Introdução
É
com vivíssimas saudades que venho recordar um bocadinho da
minha
infância tão cheia de artes, deixando aqui
retratadas algumas, cuja
lembrança perdura em minha memória. Como
alguém já disse que "recordar
o passado é viver outra vez", com os meus 80 janeiros
transporto-me a
mais risonha e feliz quadra de minha vida: minha infância e
minha
adolescência.
Chamando a atenção de
meus leitores, digo: sempre fui péssima
estudante, portanto longe de mim a idéia de ser literata.
Concluindo,
deixo aqui a seguinte quadra:
Iniciando
as
Memórias
Eu vou dizendo também:
Cada qual dá o que pode,
Cada um dá o que tem.
1964
Georgeta
Página
inicial com a dedicatória de Auxiliadora,
Eurico e filhos para Dodoge,
no
caderno onde ela escreveu suas memórias.
Verso da capa onde Dodoge oferece este caderno para Tio Lali e Tia
Nieta.
Na
penúltima folha do caderno ela deixou escrito:
Ofereço
este caderno
Ao Lali e
a Nieta.
É
uma recordação
Da pobre
velha Georgeta.
Na
última página ela escreveu esses versos:
Encerrando.
Não
deixo nada de bom
P'rá
Vocês, quando eu morrer
Apenas
"Minhas Memórias"
É
que posso oferecer.
Nuns garranchos mal
traçados
Sensaborias sem fim,
Vocês lerão muita cousa
E se lembrarão de mim.
Quando eu partir desta vida
Não dispenso uma oração.
Minha benção para todos
E tambem meu coração
Eurico e Auxiliadora
Meus netinhos - vida minha!
Não se esqueçam, por favor
Da pobre velha
Dindinha
LEONOR
Escrever
alguma coisa
fazendo alusão a minha sempre chorada e querida Leonor,
é tarefa
difícil porque sinto acordar a saudade adormecida em meu
pobre coração.
Esta saudade nunca desaparece, me acompanha sempre e sempre.
Sei que
ela
está muito melhor na
outra vida na companhia de nossos pais e Branca, não
acontecendo o
mesmo comigo, pois apesar de rodeada de afetos dos meus este
não
substitui a falta que sinto dela. Todavia não posso deixar
que ela
fique esquecida porque citarei os nomes de todos os meus
irmãos.
Nuns
versos
que fiz comemorando o 1º aniversário de sua morte,
está retratado o que me vai n`alma.
LEONOR
Vossa
vontade seja feita em tudo!
É
isto que vos digo, meu Senhor.
Levaste
para o Céu o meu tesouro.
A
minha muito amada Leonor.
Sofri
e sofro muito, bem sabeis.
Não
tem limites minha soledade!
Sem
revolta, meu Deus, eu vou sofrendo
As
agruras cruéis de atrós saudade!
E
digo sempre com sinceridade:
-
Seja feita, Senhor, Vossa vontade!
PAPAI E MAMÃE
Não
sei qual dos dois era
o melhor?! Parece-me que ambos foram feitos da mesma massa e talhados
para formar um casal exemplar. Deus caprichou deveras!
Quando
papai
pediu a mamãe em
casamento, houve uma relutância da parte de Vovô
porque o irmão mais
velho dele, casado com uma irmã de mamãe, os dois
não tinham os gênios
compatíveis. Vovô teve receio de suceder o mesmo
com outro genro e foi
franco. Papai afiançou-lhe que ele não se
arrependeria se desse o
consentimento. De fato ele foi um marido exemplar e mamãe
julgava-se
muito feliz. Ela atendia a todas as razões de papai. Viveram
muito
felizes, Deus louvado!
Na vida
deles
houve um grande
abalo: foi quando incendiou-se a nossa casa, queimando tudo, salvando
com os moradores, bem pouca coisa.
Era
recente a
instalação da casa
comercial, todo o estoque era novo, de sorte que foi tudo por
água
abaixo, deixando meus pais desolados.
Com a
família crescendo, papai
não podia desanimar, tinha que reagir. Começou a
vida de novo. Vovô
emprestou-lhe dinheiro e ele como era corajoso e trabalhador, venceu,
embora não amealhasse fortuna. Construiu uma casa
confortável e pode
educar os filhos.
Depois de
uma
moléstia prolongada
veio a falecer na Fazenda do Engenho, no dia 25 de outubro de 1909,
sendo sepultado no mausoléu da família de
mamãe em Ponte Nova.
Mamãe
era de uma bondade
inigualável. Soube criar os filhos sempre unidos e esta
união perdura
até hoje. Viveu ainda alguns anos, sempre boa, sempre
caridosa. Faleceu
no dia 25 de abril de 1928 após grandes sofrimentos e foi
sepultada
junto de Zito, Ioió e Arthur ().
BRANCA
Será
que conseguirei escrever algo que dê a idéia do
que foi a nossa querida Branca? Vou tentar embora espere um fracasso.
Branca
era a
nossa irmã mais
velha. Possuía um coração feito a
capricho por Deus. Com nossos pais,
ela foi de uma dedicação fora do comum! Por
ocasião da moléstia que
levou papai a sepultura, Branca foi uma heroína. Quando o
Dr. Cupertino
examinou papai, vendo que o caso era perdido, foi franco com Branca.
Precisava que alguém da família fosse inteirado
do que estava para
acontecer. Ela, sabedora de tudo, guardou reserva, sofrendo sozinha
pois achou que devia ocultar de mamãe, pois que ela sofreria
muito
enquanto durasse a enfermidade. Permaneceu como enfermeira ao lado de
papai acompanhando passo a passo o desenrolar dos acontecimentos. Foi
de uma dedicação invulgar!
Como
irmã, não podia ser melhor, era
solícita com todos nós.
Causou-nos
grande surpresa o seu
casamento. Morou uns tempos em Belo Horizonte e mais tarde voltou para
Santa Cruz, permanecendo em nossa casa até quando nasceu a
1ª filha de
Auxiliadora.
Quando
Lali
mudou-se para Belo
Horizonte ela voltou para me fazer companhia e nunca mais nos
separamos. Morávamos em Mateus Leme quando ela faleceu
repentinamente
no dia 12 de maio de 1953. Com sua morte tive um abalo muito grande.
Perdi a minha segunda mãe. São imensas as
saudades que sinto dela, tão
boa, tão dedicada!
ZITO
Eu tinha
um
irmãozinho
muito bonitinho, louro, corado e gordinho. Chamava-se Luiz e tinha o
apelido de Zito. Era uma criança vivaz, dócil e
era o encanto de meus
pais.
Ele tinha
apenas dois anos de idade e era o 3º dos filhos pois
até então só tinha nascido mulheres.
Zito era
travesso e irrequieto e todo o mundo gostava dele.
Um dia
estávamos descascando
amendoim junto a sacada e atirando as cascas na rua. Zito de vez em
quando tirava um grão e comia e nós
achávamos graça naquilo.
Ignorávamos o mal que podia fazer ao menino; foi quando a
Ióió viu e
deu o alarme, retirando-o de perto. Passadas algumas horas, Zito
começou a passar mal com febre alta, dando
convulsões e perdendo até o
sentido. Mamãe ficou desnorteada, mandou chamar papai e este
achando o
caso sério, mandou incontinente chamar o Dr. Felipe em Rio
Doce. Este
veio logo e ao examinar a criança desnorteou-se pois
percebeu logo que
o caso era grave. O coitadinho foi dando convulsões
até que expirou nos
braços da mamãe.
Coitada!
Ficou
como louca vendo
seu filhinho morto em seus braços. Ficou agarrada com ele
até que o
vestissem para ser enterrado. Vestiram-no de Padre, com batina e
barrete cor de rosa e sobrepeliz branca. Puseram-lhe nas
mãos um
livrinho como se ele estivesse lendo. Apesar de minha pouca idade
lembro-me de tudo, pois o que presenciei causou-me profunda
impressão.
A
saída do enterro mamãe ficou num desespero louco,
muitos dias permaneceu fechada no quarto chorando sem consolo. Coitada!
Depois
ela
ponderou que os outros
filhos precisavam dela e teve que reagir. O óbito deu-se no
dia 4 de
abril de 1891. Bem mais tarde mamãe foi sepultada junto do
filhinho
querido.
Papai
brincava
sempre dizendo que
os 3 filhos estavam destinados para Medicina, Farmácia e
Sacerdócio. O
que ele pensou realizou-se: Joanito é médico,
Lali farmacêutico, e o
sacerdote voou para o Céu.
IOIÓ
Foi no
dia 25
de novembro
de 1927 que deixou de existir a nossa sempre lembrada Ioió.
Santa
velhinha, tão boa, tão dedicada! Sua
lembrança jamais se apagará da
memória daqueles que provaram com ela. Em sua vida deixou um
exemplo de
amor e dedicação extraordinário.
Ioió foi escrava do proprietário da
Fazenda do Engenho em Ponte Nova e foi Babá de uma de suas
filhas.
Dedicadíssima ao extremo, tudo fazia pela sua sinhazinha que
era a
minha mãe. Os anos foram correndo e a menina ficou
moça e como tal foi
pedida em casamento. Na véspera das bodas, vovô
querendo recompensar
tanta dedicação da pobre escrava, entregou a
mamãe, para que ela desse
a sua babá, a "carta da liberdade" no dia de seu casamento.
Ioió
foi chamada e na presença de
toda a família reunida, mamãe muito emocionada
lhe falou: "Ioió, você
não é mais escrava. De agora em diante
você é livre, pode ir para onde
quiser. Está aqui a sua carta de alforria como recompensa do
quanto fez
por mim."
Ioió
com os olhos rasos de
lágrimas, recebeu o papel e de joelhos abraçou a
sua querida
sinhazinha, ou antes Sanica, e disse entre soluços:
"Não quero a
liberdade! Serei sempre escrava de minha filha branca. Acompanha-la-ei
para onde ela for." E rasgou a carta em muitos pedaços com
espanto dos
que assistiram a cena.
E viveu
uma
vida longa e ajudou a criar com a mesma dedicação
os 10 filhos de meus pais.
Veio o 13
de
Maio tão suspirado
pelos escravos. Todos ficaram livres porém Ioió
continuou sob o teto
acolhedor de sua filha branca.
Morreu
com
quase 100 anos, 6 meses antes da morte de sua querida Sanica.
LALI
Depois de
ter
prestado uma
pequenina homenagem aos entes queridos que partiram desta para melhor
vida, minha gratidão reclama alguma coisa para aquele que
substituiu
papai e que é para mim a melhor das criaturas: Lali.
Não
encontro palavras para defini-lo, portanto resumo em duas o que ele
é: um justo! um santo!
Coloquei-o
num
altarzinho erigido em meu coração e como adorno
apenas duas flores: amizade e gratidão!
É
tudo que posso dizer deste irmão tão bom e
tão querido!
A vitrola e os discos
Como
gostava
de música a
minha saudosa Leonor! Muitas vezes ela estava entretida brincando com
as bonecas, quando ouvia o som do piano numa música que ela
apreciava e
era executada por Sinhá, ela deixava os brinquedos e ia para
a "sala
grande" e ficava sentadinha perto do piano. Ao terminar a
música, Sinhá
dava-lhe um caderno de músicas publicadas pela revista "O
Malho", para
ela escolher a música que desejasse. Ela folheava tudo
até encontrar a
favorita e dizia: "É esta. É Ramona". No entanto
ela não sabia ler.
Quer dizer que na aludida música havia um sinal qualquer que
ela
distinguia. Por causa deste prazer de ouvir música,
compramos para ela
uma vitrola pequenina e alguns discos. Dondona mandou-lhe mais uns e
ela ficou com uma bela coleção de...porcarias...
Ela
passava as
vezes o dia todo a
moer a tal vitrola. Os discos eram quase sempre interrompidos por falta
de corda no aparelho. Era um angu de caroço que atordoava a
cabeça da
gente.
Um belo
dia, a
vitrola resolveu a
ficar parada; a corda tinha arrebentado. Leonor ficou zangada, socava a
vitrola, dava corda, e...nada! Desanimada, em vez de guardar os discos,
resolveu a jogá-los da janela do quarto dela lá
no terreiro,
espatifando tudo. E...era uma vez uma vitrola, a diversão da
pobrezinha.
Tio Fonseca
Fizemos
amizade com um
fotógrafo ambulante vindo lá da cidade do Pomba.
Ele esteve hospedado
uns dias em nossa casa. Como ele era muito bonzinho, procurou o mais
possível agradar a Leonor porque percebeu logo que ela era o
nosso Ai!
Jesus! De maneiras que a Leonor acabou familiarizando-se com ele.
Quando Tio Fonseca foi-se embora, Leonor sentiu muito e vivia falando
nele. Para matar a saudade ela arranjou um pedaço estreito
de tábua
grossa e alguém pintou nele uma cara e disse que era o
retrato de Tio
Fonseca. Ela ficou toda contente e não se separava dele.
À hora de
dormir, Tio Fonseca ia para o cantinho da cama dela. Certa noite,
não
sei o que ela arranjou que Tio Fonseca foi parar debaixo da cama.
Leonor acordando sentiu falta do companheiro e começou a
remexer e a
chorar até que o papai acordou e foi verificar de que se
tratava. Com
aquele movimento mamãe acordou também toda
assustada queria saber de
que se tratava. Então papai lhe disse: "Ela está
chorando porque Tio
Fonseca caiu debaixo da cama".
Tratou de
descer, arredou o catre
que ficava lá no cantinho da cama dele e apanhou o rapazinho
causador
da barulheira. Só assim a Leonor conseguiu aquietar-se e
dormir outra
vez. Esta amizade com o pedaço de tábua foi
duradoura. Leonor custou a
se esquecer de Tio Fonseca.
Com Deus e as almas
Tia Ana
é o nome de uma
senhora vinda lá das bandas de Sant’Ana e
empregou-se lá em nossa casa.
Com ela veio uma filha de uns 10 anos, mais ou menos, muito franzina,
não obstante era sadia. Leonor tomou amizade a garota e esta
lhe
obedecia cegamente. As ordens mais absurdas
Conceição executava
prontamente.
Em nossa
casa
havia um quarto
denominado Quarto Novo, e era nele que a Leonor passava os dias
entretida com os retalhos e uma infinidade de bonecas de todo jeito e
feitio. Ali ela ficava picando os retalhos e costurando a seu
modo...até a tardinha quando saía a passeio,
indo, as vezes, em casa de
Sinhá e, quase sempre no adro da igreja passando pela rua de
cima.
Ficava horas inteiras a socar pedras moles. Muitas vezes ela brincava
com as meninas da vizinhança, fazendo cosinhado de mentira.
Era esta a
sua vida quando não tinha aquelas crises nervosas.
Com a
chegada
da Conceição, Leonor ficou reinando: mandava e
desmandava à vontade e a menina obedecia sem trepidar.
No Quarto
Novo
havia sempre uma
esteira estendida no chão e era lá que a Leonor
ficava sentada, rodeada
de malas cheias de bonecas e retalhos. A tesoura trabalhava toda a vida
e não havia retalho que chegasse. Às vezes,
não sei porque cargas
d’água, dava-lhe na veneta de jogar os retalhos em
cima do telhado de
um paiol que havia embaixo da janela. Certa vez ela remexeu as malas
todas procurando um retalho, até que resolveu ir
à janela observar se
estava no telhado. Vendo o retalho, chamou por
Conceição e mandou que
ela fosse buscá-lo. Da janela apontou para o telhado cheio
de retalhos.
Conceição, querendo obedecer, chegou à
janela, mediu a distância e teve
medo. Mas a Leonor não tomou conhecimento e disse para ela:
"Pula,
Conceição, com Deus e as almas". A menina criou
coragem, sentou na
janela e foi resvalando até cair no telhado. Felizmente
só levou susto.
Ela era tão leve que nem quebrou as telhas. Da janela Leonor
apontava
os retalhos: a menina apanhava e ela dizia que não era
aquele, até que
enfim acertou. Leonor deixou a janela e foi cuidar das bonecas e
Conceição ficou sem saber como ia descer e
começou a chorar alto. Por
um acaso Branca passou pela varanda e viu a garota no telhado.
Adivinhou logo ser arte da Leonor pois a pequena trazia as
mãos cheias
de retalhos. Branca disse a ela que esperasse um pouco que ela ia
arranjar uma escada. A menina deixou de chorar e desceu pela escada
segurando sempre os retalhos. Foi diretamente ao Quarto Novo para
entregar a Leonor o que ela queria.
Depois...
foi
beber água por causa do susto...
Na loja do Papai
Eu
gostava
muito de ficar
na loja do papai. As vezes auxiliava atendendo a freguesia.
Já sabia
vender cravo, canela, erva-doce e até sal amargo. Colocava
direitinho
no lugar competente o produto das vendas. Mas..., quando ficava
sozinha, metia a mão dentro da lata de fumo desfiado, tirava
um
punhadinho, arranjava palha e um tição e corria
para a horta e lá
tirava boas fumaças. As vezes eu sentia tonteiras por falta
de hábito e
corria para a cama onde tirava boa soneca. E ninguém
descobria a minha
arte.
Uma vez,
apareceu lá no negócio a
Sra. Rosa, esposa do Sr. Domingos de Ramos. Ela queria comprar uma
chita e papai desceu da prateleira diversas peças. Eu estava
atenta
vendo a freguesa escolher. Afinal a Sra. Rosa separou uma
peça e disse:
"Sr. Capitão, pode tirar 5 metros dessa, que está
me agradando". Papai
abriu a peça e começou a desenrolar a chita e
principiou a medir.
Fiquei observando e reconheci a chita sarapintada e fui logo dizendo:
"Ih! Sra. Rosa, esta chita desbota toda. Mamãe já
lavou um
pedacinho...". A Sra. Rosa largou o metro no balcão e disse:
"Se é
assim, Sr. Capitão, não levo não." E
foi saindo de banda. Papai franziu
a testa e limpou a garganta em sinal de
reprovação e eu tratei de
escapulir receando as chineladas...
Os Velocípedes
Joanito,
Lali
e Juca
formavam uma trinca inseparável. Freqüentavam a
mesma escola e as artes
eram de sociedade. Em certa ocasião eles ganharam um
velocípede. O de
Joanito e Lali era vermelho e o de Juca era cor de estanho. Antes e
depois das aulas os garotos apostavam corridas. Levavam cada tombo que
era uma beleza! O Juca era o mais alto e o mais magro dos
três e o
velocípede dele era menor. Nas corridas dava gosto a gente
apreciar os
joelhos do Juca que às vezes iam acima da cabeça.
Lali, que era
menorzinho, nunca apostava carreira com receio dos tombos
espetaculares. Certa vez, numa das corridas, emprestaram o
velocípede a
Ceceto. Este, numa correria louca, não via
ninguém; olhava só para os
pedais. Com isto atropelou a Chiquinha Capichaba que foi atirada longe
tendo perdido os sentidos, pregando assim um susto tremendo nos meninos
que recolheram a casa assustados, tremendo como vara verde.
Resultado:
os
velocípedes foram recolhidos e os meninos só
tinham licença de brincar dentro de casa.
Iniciamos
um
tempo quente, pois
até eu entrei na folia. Era um barulho ensurdecedor.
Não sei como papai
aturava. Partíamos da porta do quarto de mamãe,
atravessávamos a
varanda, a sala de jantar, a salinha, entrávamos na sala
grande,
dávamos uma volta na mesa redonda e voltávamos ao
ponto de partida. E
isso era todo o dia até que os velocípedes
perderam as rodas.
Vovô e Vovó,
do Engenho
Estávamos
na Fazenda do
Engenho em Ponte Nova. Periodicamente, mamãe, apesar de
grandes
sacrifícios, passava conosco uma temporada na propriedade de
seus pais.
Para nós, as crianças, aquilo era uma
delícia! Vovó, cujo semblante
denunciava a bondade que enchia a sua alma, era a sempre defensora de
nossas artes. Era o nosso Anjo da Guarda.
Vovô,
tipo imponente, de barbas
brancas adornando o rosto, um tanto calvo, impunha um respeito que
ultrapassava os limites. Este terror que existia não passava
da
imaginação exagerada das nossas tias. E com isto,
ninguém tinha coragem
de elevar a voz quando pressentia Vovô ali por perto. No
entanto, ele
era tão bom, tão amigo de todos nós.
Da meninada, apenas eu tinha a
coragem de enfrentar em prosa com o velhinho. Mamãe nos
dizia: "Vai
conversar com papai." e a única que se dispunha era eu.
Desconfiada eu
ia chegando devagarinho, assentava junto dele na escada de pedra que
dava para o terreiro grande e ficava a espera que ele puxasse conversa.
Vovô, todo risonho, punha-se a fazer perguntas e eu
então dava trelas à
língua. Contava tudo quanto existia em Santa Cruz. Falava
das casas do
arraial e dava relação até das
árvores existentes em nosso quintal.
Falava dos porcos, das galinhas e das vacas, sempre com exagero
é
claro, para fazer vantagem. Relatava a quantidade de fruteiras, com
todos os pormenores. E Vovô com um sorriso bondoso
só ia me aplaudindo.
Os tempos
correram e Vovô veio a
falecer repentinamente, justamente nos dias em que ia festejar suas
Bodas de Ouro. Foi uma bomba! Os festejos já iniciados foram
sepultados
com ele. E a Fazenda do Engenho entrou em fase diferente: a liberdade
pediu licença para tomar conta da Fazenda. Já
não havia mais aquele
rigor surgido da imaginação do pessoal.
Passados
alguns anos morreu Vovó, aquela santa velhinha. E ficou
assim encerrado o nosso bom tempo de criança.
O casamento
Lá
na roça, os casamentos
são sempre realizados aos sábados. As ruas ficam
movimentadas com a
chegada dos noivos e acompanhamento. As mais das vezes o noivo vinha a
cavalo com um punhado de homens, e a noiva a pé com suas
amigas.
Fechava o bando um camarada carregando um baú de folha com a
roupa da
noiva. Lá pelos lados do Facão –
sítio de um agricultor – morava uma
família cujos membros só iam ao arraial no dia do
batizado. Só os
homens saiam de casa.
Num
casebre
distante da estrada,
morava uma família composta de um punhado de filhas. Estas,
só viam
gente de longe em longe, portanto não podiam fazer
idéia do que era uma
cidade ou um arraial.
Mesmo
lá num cantinho onde
morava, Bina filha mais velha de um rendeiro, achou casamento. O
rapazinho ficou caído pelo beicinho da mulata e resolveu
pedi-la em
casamento. O pai ao consultá-la recebeu como resposta o
seguinte: "Meu
pai eu quero casá com Janjão pruquê
acho ele um pancadão." E foi
entrando para o quarto toda envergonhada... Os dias foram correndo e o
Janjão apertou ao futuro sogro para marcar o dia do
casamento. O
suspirado dia chegou e lá se foram os noivos em demanda do
arraial.
Conforme o costume, os homens iam a cavalo e as mulheres a
pé. A noiva,
que nunca havia saído de casa, achava aquilo uma maravilha.
Poeira que
não acabava mais. Ao chegar na estrada do arraial, a noiva,
vendo
aquele punhado de casas, a Igreja, um caminhão... parou
olhando para
todos os lados, pôs a mão no
coração e maravilhada exclamou: "Meu Deus!
Como este mundo é grande!"
A brecha do Lali
Lali
sempre
foi meu companheiro. Nossa união nas artes era daquele
jeito...
Estávamos
na Fazendo do Engenho
em Ponte Nova onde mamãe costumava passar uma temporada em
visita a
seus pais. Lá as artes eram disfarçadas pois
tínhamos um respeito
formidável de Vovô. Se até as filhas
dele, que já eram moças maduras,
quando percebiam os passos arrastados de Vovô formalizavam,
botavam o
indicador no nariz e diziam: "Psiu, aí vem Papai."
Nós todos
arregalávamos os olhos e pisávamos de mansinho.
Apesar de tudo isto as
artes não eram abandonadas. As mais das vezes as tripulias
eram
feitas no interior da casa, mas o campo era por demais pequeno. De vez
em quando, agente planejava uma fuga para ir a horta dar uma batida nas
fruteiras ou mesmo fazer uma pescaria no rio que passava perto. Os
cambucás estavam amarelinhos de botar água na
boca. E as jaboticabas?
Mais pretas do que carvão.
Uma vez
Lali
combinou comigo para
fugirmos para irmos a horta. O terreiro de dentro estava fechado
à
chave. Por ali não era possível. Não
desistindo da idéia, resolvemos a
afrontar o Vovô sorrateiramente. Ficamos a espreita no
corredor até que
ele passou para o outro lado da varanda como era seu costume.
Então, pé
ante pé, íamos devagarinho até
alcançar a escada que era descida com
cuidado e o coração batendo apressado...
Ficávamos debaixo da escada
até que Vovô voltasse. Plano feito, plano
executado. No momento em que
Vovô voltou, mais que depressa abrimos a porteirinha e
esgueiramos pelo
cantinho para não sermos vistos. Tínhamos que dar
um pulo pois era alta
a descida. Mais que depressa pulei em primeiro lugar, porém
fui infeliz
pois o Lali havia pisado na minha saia e foi arrastado, batendo com a
testa numa pedra de ponta e foi aquele desastre! Com a testa furada e o
sangue a escorrer, Lali fez uma gritaria louca. Eu vendo tanto sangue
comecei a tremer e a chorar pensando que Lali ia morrer (não
sei dizer
se era pena do Lali ou medo das palmadas a razão de minhas
lágrimas...). Dona veio correndo, apanhou o Lali e foi
levá-lo para
Mamãe. Esta levou um susto tremendo e tratou de fazer o
curativo. Só
assim Lali deixou de gritar pois o sangue deixou de correr. E eu
continuava chorando na escada de pedra sem coragem de subir com medo de
Vovô. Branca levou-me quase arrastada e eu chorando sempre.
Lali
ficou com
uma cicatriz
grande na testa como lembrete de nossa arte. E todo o mundo olhava para
ele e perguntava: "Lali, que brecha é esta?"
Despencou da laranjeira
Quiquinha
era
muito
corajosa para não dizer ousada. Vencia sempre as
dificuldades. Uma vez
ela me encontrou na horta debaixo de uma laranjeira, a fitar com
olhares compridos uma bonita penca de laranjas lá na grimpa.
Ela
indagou logo o que eu estava fazendo ali a olhar para cima. Mostrei-lhe
a penca de laranjas e ela foi logo me dizendo: "Porque você
não apanhou
e fica aí como boba?". Eu respondi que a penca estava muito
alta e não
havia vara que alcançasse. Ela olhou para cima, pensou um
pouco e disse
resolutamente: "Pois eu vou trepar na laranjeira e apanharei as
laranjas". Sem mais discussão foi subindo cautelosamente
receando os
espinhos e eu, cá de baixo a olhar, admirando a coragem
dela. Quando
ela estava quase alcançando as laranjas foi mudar de galho.
Sem
reparar, pisou num galho seco, este quebrou, e ela resvalou pelo tronco
até o chão.
Fiquei
surpresa, tal foi o meu
susto! Quiquinha caiu em pé e com os olhos arregalados,
pôs as mãos no
peito e disse arquejando: "Ai! Estou sem fala!" Ao ouvir aquilo desatei
a rir e disse: "Que negocio é este? Você
não está falando?" Ela
percebeu a rata e vendo que não tinha se machucado acabou
rindo tambem.
Vovô e Vovó
do Charnecão.
Vovô
era um homem cheio de
manias. A sua mudança para Santa Cruz do Escalvado foi o
resultado de
uma demanda perdida. Achou que havia sido humilhado e não
quis
permanecer na Fazenda do Gandarele (???), perto de Caeté.
Não deu
importância aos prejuízos causados pela
mudança e com a família
transportou-se para a Fazenda do Charnecão em Santa Cruz.
Conforme
eu
disse acima ele era
um indivíduo cheio de manias. Mas possuía um
coração generoso sempre
pronto a servir aos necessitados. A sua mania número um era
receitar,
visitar os doentes, aplicar ventosas etc., fazendo tudo
desinteressadamente. Não cheguei a conhece-lo.
Mamãe contava que ele,
todas as manhãs, mandava arrear o Pangaré e,
cavalgando-o, partia em
direção ao arraial. Corria aquilo tudo: das
Mercês ao Patrimônio
visitando os doentes sem recursos. Dizem que ele era um bom
charlatão e
gostava do ofício... Ia de casa em casa atendendo aos
doentes mas não
descia do cavalo. O doente vinha até a janela, consultava e
no dia
seguinte Vovô levava o remédio. Uma vez, ele
passando em frente a uma
cafua, bateu na janela chamando pelo morador. Este veio arrastando os
tamancos e gemendo. Com custo chegou a janela. Ao vê-lo
Vovô indagou:
"O que é que você tem, homem de Deus, que
está tão amarelo?". O doente
respondeu: "Ih! Sô Majó tô passano um
mal danado! Tou cum febrão
brabo... Vancê nem quêra sabê!".
Vovô, com a bengala – sua inseparável
companheira – tocou no pulso do doente. Depois disse: "De
fato Você tem
razão: a febre está alta! Vai deitar, rapaz.
Amanhã eu trago o remédio
que Você precisa". E continuou a sua romaria.
Vovó
era cantora na igreja
juntamente com a Titia. Ao piano executavam algumas músicas.
Ela
descendia de uma família importante de Juiz de Fora.
Vovó
era alegre, gostava muito de festas fossem elas mundanas ou religiosas.
Com Titia
– única filha no meio
de 7 rapazes – tomava conta do coro pois ambas
possuíam belas vozes.
Por ocasião do Mês de Maria, todas as tardes
lá iam elas para o arraial
e só regressavam depois dos leilões.
Vovô não concordava com aquilo e
ficava tiririca! Vivia em turra mas Vovó não
ligava. E assim corria
todo o mês de Maio. Terminando o Mês de Maria,
Vovô pensou que havia
acabado a saracoteação. Puro engano! Apareceu
logo outro pretexto: a
chegada de Mamãe em visita a Belêsa (???) sua
irmã. Vovó apreciava
muito a prosa de Mamãe e por esta razão todas as
tardes lá iam as duas
para o arraial. Vovô já não estava
agüentando aquilo. Uma tarde Vovó já
tinha saído com Titia, quando Vovô chegou na
varanda e viu pelo chão
grande sujeira de cachorro. Com aquilo ficou tiririca... e
começou
andar agitado de um lado para outro até que avistou
lá na volta do
caminho Vovó e Titia que regressavam. Então
Vovô carrancudo
formalizou-se no topo da escada. Quando Vovó foi entrando
ele apontou
para a sujeira e disse: "Mês de Maria, de muita alegria!
Mês de Anica,
de muita titica". E foi dando as costas entrando para o
escritório.
Vovó, sem dúvida, riu um bocado e foi chamar uma
escrava para fazer a
limpeza.
Tio Casemiro
Eu
gostava
muito de fazer
crivo. Aprendi este trabalho com Tininha minha tia e madrinha. Levava a
almovada lá para o negócio e ficava costurando
enquanto não aparecia
freguês. As artes tinham uma trégua por causa da
presença de papai, que
ali perto fazia a escrita da casa comercial.
Uma vez,
pela
manha, entrou no
negócio o Tio Casemiro freguês e amigo de papai.
Ele foi logo bulindo
no chapéu e cumprimentando: "Sio Capitão, como
passa Vossa Senhoria?"
Ele era metido a falar difícil e a puxar termos... Papai
correspondeu a
saudação e encostou a caneta, vindo para perto do
balcão, aguardando as
ordens do freguês. Tio Casemiro pôs-se a olhar para
as prateleiras
desde as de fazendas, como de armarinho e ferragens, até que
a sua
vista alcançou as prateleiras dos remédios. Foi
quando ele se lembrou o
que queria. Virou-se então para Papai e perguntou: "Sio
Capitão, o
Senhor não tem aí as tais Pilas
Catalão de Aiê?" Papai sorriu e foi
procurar o remédio solicitado. Fiquei intrigada porque nunca
ouvira
falar naquele remédio e curiosa cheguei perto de Papai no
momento em
que ele entregava a droga ao freguês e li: Pílulas
Catarticas de Ayer.
Tive uma vontade maluca de dar uma risada mas olhei para o Papai e ele
estava tão sério que adiei a risada....
Na barrica de milho
Não
sei como cheguei a ser
professora! Fico admirada porque, desconfio que na minha
geração, não
houve criança tão vadia quanto eu.
Entretanto,
como professora, fui enérgica e sabia ensinar
(modéstia a parte).
Ao
atingir a
idade escolar fui
matriculada na escola de D. Mariazinha, esposa do tio Augusto. Papai
fazia a matrícula sem indagar da gente se aquilo era ou
não de nosso
agrado. Por conseguinte, gostasse ou não,
tínhamos que freqüentar a
escola. Arranjávamos um bauzinho de folha, botava dentro uma
cartilha
de ABC, a lousa, lápis e caderno para o debuxo. Devo
explicar o que vem
a ser debuxo porque hoje não se usa mais. A professora
escrevia no
caderno a lápis e nós cobríamos com
tinta. Para acertar a mão, em vez
de letras eram uns riscos em pé ou inclinados. seguiam-se as
letras e
em seguida palavras. Havia decorrido uma semana e eu já
estava enjoada
de escola. Já não estava tolerando minha Mestra e
nem D. Chiquinha –
que às vezes era professora improvisada... Era um
suplício agüentar
tantas horas quieta num banco, sem poder andar nem conversar. Eu levava
horas arquitetando um meio de não ir a escola, de burlar a
vigilância
de Papai. Quase em frente a nossa casa morava D. Josefa, muito amiga de
Mamãe, e nós íamos sempre em sua casa.
Ganhávamos biscoitos, frutas,
doces etc. Era uma beleza!
Uma tarde
saí de casa parafusando
um plano de falhar da escola escondida de Papai. Fui para a casa de D.
Josefa e lá fiquei esquadrinhando todos os cantos procurando
um
esconderijo, até que encontrei num cantinho uma grande
barrica com
milho até a metade. Achei que ali era um ótimo
esconderijo. Nasceu-me
logo a idéia de executar o meu desejo de, em vez de ir a
escola,
esconder-me dentro da barrica. Estava planejada a arte. No dia
seguinte, logo depois do almoço, troquei de roupa, tomei do
bauzinho e
desci as escadas. Em vez de seguir para a escola fiquei na porta
observando papai. No momento em que ele foi a sobreloja troca na
escrivaninha uma nota para um freguês, dei uma corrida e fui
direto a
casa de D. Josefa, indo direto para dentro da barrica de milho,
lá
ficando até ser descoberta. Pedi a D. Josefa pelo amor de
Deus para não
contar a ninguém que eu estava fugindo da escola. Por seguro
fiquei
dentro da barrica até terminar as aulas. Minha Mestra
cantava um hino
com as crianças ao terminar, e no final as
crianças saiam numa
garalhada medonha, umas para as Mercês, outras para o
Patrimônio.
Aproveitei a confusão da meninada e cheguei em casa com o
meu bauzinho
e fui logo pedindo café com biscoito pois estava com fome.
Fiz isto
para que pensassem que eu tinha vindo mesmo da escola. D. Josefa
cumpriu o que havia me prometido, não contou a
mamãe a minha arte,
dando assim ensejo de diversas repetições.
A Descoberta
Quando eu
era
criança dava a vida para fazer artes. Trazia a
Mamãe de "canto chorado" como ela dizia.
Com uma
habilidade invulgar eu
burlava a vigilância do Papai e por esta razão
nunca era repreendida
pois as artes nunca apareciam.
Sem
cerimônia nenhuma eu
percorria todas as casas do arraial. Almoçava aqui,
merendava ali e
jantava acolá. E ninguém desconfiava de nada.
Depois de
ter
almoçado em casa da
Bujula, eu chegava em casa justamente na hora em que tia Porcina levava
os pratos para a mesa. Mais que depressa eu descia as escadas para
chamar o Papai. Na mesa eu olhava os pratos com desdém e
nunca tinha
apetite. Mamãe ficava nervosa e dizia: "Esta menina
não está se
alimentando direito, precisa tomar um tônico para abrir o
apetite. Só
mesmo o Vinho Reconstituinte Silva Araújo poderá
fazer voltar o
apetite". E eu lambia os beiços porque gostava do tal vinho.
Ouvia tudo
caladinha com um olhar de sem vergonha... E a arte passava despercebida.
Certa
vez,
numa destas
peregrinações, fui à casa de Sa Luissa
lá na Rua de Cima. Cheguei na
hora H: as panelas fumegavam e de dentro saia um cheirinho gostoso...
Sem mais aquela, entrei num bom prato de feijão, angu e
couve com uma
lasquinha de lingüiça oferecido pela dona da casa.
Satisfeito o apetite
despedi-me e fui correndo para casa, justamente na hora em que Papai
cerrava as portas do negócio para ir almoçar. Na
mesa, olhei tudo com
uma cara enjoada como quem não queria nada. Mas, vendo na
mesa uma
terrina com galinha de molho pardo, meu prato predileto, não
resisti.
Apesar de ter o estômago cheio, fartei-me com a deliciosa
galinha.
Momentos após, o estômago não aceitando
mais aquela carga botou tudo
p’ra fora. Mamãe , toda aflita, quis verificar o
que me havia feito mal
e com surpresa notou vestígios de couve e angu que
não havia na mesa.
Foi assim que foi descoberta a minha falta de apetite. Em vez de Vinho
Silva Araújo ela me deu umas sacudidelas e um bom copo de
sal amargo.
A facada
Eu
já disse que o Lali sempre foi meu companheiro nas artes,
senão vejamos.
Certa vez
fugimos para a horta
escondidos de Mamãe e começamos a escarafunchar
tudo procurando alguma
coisa para incrementar as nossas artes. Achamos num monturo de lixo uma
faca sem ponta e toda enferrujada. Dei um pulo e peguei na faca. Lali
gritou: "É minha, quem cavou o buraco fui eu." E eu
retruquei: "Não
senhor, quem pegou nela primeiro fui eu." E a briga começou:
eu puxo,
ele puxa, eu xingo, ele xinga e Lali, sempre seguro no cabo da faca,
conseguiu toma-la. Comecei então a arranjar apelido para
ele: "Lali
cabrito. Lali mosquito" e por aí a fora. Desesperado com os
insultos,
ele avançou furioso contra mim e, com toda a
força, espetou-me a faca.
Mesmo sem ponta e enferrujada a faca apanhou meu braço num
golpe
profundo. Apesar de decorridos tantos anos ainda tenho o sinal no
braço
direito. A pedra marcou Lali, e a faca
sem ponta a mim.
Na goiabeira
Fui para
a
horta em
companhia de Zinha. Rodamos a horta toda em na esperança de
encontrar
uma fruta para satisfazer a nossa gulodice. De repente, Zinha apontou
para uma goiabeira dizendo: "Olha lá que
porção de goiabas, todas
inchadas." Olhei e vi "cada bitela" que dava gosto e... água
na nossa
boca.
Como
Zinha era
medrosa e não
trepava em árvores, resolvi fazer o serviço
sozinha. Antes, porém, fiz
uma recomendação: "Vigia a porta da horta porque
Papai pode vir e
zangar com a gente. Ele vindo, você me avisa que eu
desço depressa."
Ela concordou e tratei de dar inicio ao trabalho. A goiabeira tinha o
tronco grosso e era fácil de subir. Trepei na cerca e
alcancei um galho
bom e toco a apanhar goiabas e jogar para Zinha. E ela, toda afoita,
toca a encher o colo e com isto esqueceu-se de minhas
recomendações. Eu
estava entretida, pelejando para alcançar uma "baita",
quando percebi o
limpar de garganta de papai. Quando olhei o papai estava parado a me
olhar e acabou dizendo: "Desce d´ahi macho
capitão." Não sei
como despenquei da galha e cai na copa da mexeriqueira que havia em
baixo. Eu tremia como "vara verde". Vendo que Papai tinha se retirado
tratei de descer e encontrei Zinha com o colo cheio de goiabas e rindo
a mais não poder. Quanto mais ela ria, mais eu xingava.
Depois a coisa
serenou e fomos para debaixo da jaboticabeira apreciar as deliciosas
goiabas.
O pipote de vinho
O que
já disse torno a
repetir: a minha especialidade era burlar a vigilância de
papai tanto
fora como dentro da casa. Nem sempre aparecia a autora das artes. Vou
relatar uma daquelas de se tirar o chapéu...
Certa
vez,
remexendo na sobreloja
esbarrei com uns pipotes encarreirados num banco baixinho. Fiquei
intrigada sem saber se aquilo era de cachaça, vinho ou
vinagre. Não
sosseguei enquanto não perguntei ao Papai. Fiquei sabendo
que o
primeiro era de vinho e os outros vinagre. A partir daquele dia fiquei
estudando um meio de provar daquele vinho, escondida do papai,
é claro.
Um belo dia aventurei. Fui ao armário, retirei um copo, e
desci pé ante
pé a escada e fui direto a sobreloja. O Papai estava
entretido lá no
paiol recebendo e pesando uns sacos de café. A demora era
certa e eu
não podia perder tão boa oportunidade. Com o copo
bem escondidinho nas
dobras da saia, fui para a sobreloja. Chegando perto do pipote de
vinho, abri a torneira, deixei escorrer um bocadinho do vinho
só para
provar. Provei e gostei. Resolvi então a beber mais um
bocadinho e
quanto mais bebia mais queria beber. Estava danado de bom! Depois senti
a cabeça rodar e tratei de ir-me embora. Sai vacilante,
encostando pela
parede, até que o copo escapuliu de minha mão e
espatifou-se no chão.
Também eu, que já não me
agüentava, caí e não consegui
levantar-me.
Nesta hora, Martinha, que estava rachando lenha, percebendo o barulho
da queda do copo, foi ver o que era e me viu espichada no
chão. Mais
que depressa ela me carregou, me pôs na cama e foi chamar a
Mamãe.
Esta, quando chegou, encontrou-me vomitando grande
porção de vinho e
cambaleando. Ela zangada me deu umas sacudidelas e me pôs na
cama, e lá
fiquei eu cozinhando o pileque.
Quando o
Papai
voltou para o
negócio sentiu forte cheiro de vinho e foi verificar o que
havia. Eu
havia deixado a torneira aberta. O chão estava todo molhado
e o pipote
vazio.
Não
me recordo se tomei palmadas
como merecia, só sei dizer e que Papai ficou muito zangado.
Dormi quase
o dia todo e quando acordei minha boca estava ruim e enjoada.
Então fiz
um protesto: nunca mais mexer em pipote de vinho!
Joanito e os maracujás
A turma
formada por
Joanito, Lali e Juca era levada da breca. Arranjava artes que era de se
tirar o chapéu. Quando eles desapareciam Quiquinha ia para a
sacada e
botava a boca no mundo a gritar pelos garotos. Às vezes
nós outras
ajudávamos na gritaria. Quiquinha era levada mas
não perdoava ninguém.
Era danada para contar a Mamãe as artes que
fazíamos. A gritaria só
cessava quando os meninos apareciam. Uma vez desapareceram os cabritos
e Joanito ficou maluco. Cansaram de procurar e nada de encontrar os 3
cabritos: Balão, Relógio e Peitudo ali por perto.
Resolveram então a
pedir licença e saíram pelo campo a gritar:
"Bito, bito, bito Relógio.
Cá Balão. Bito, bito, bito Peitudo". E nada.
Deram uma batida no campo
e resolveram a ir pelos lados do Fundão e Mutuca atras dos
fujões.
Ao passar
perto de uma moita
deram com uma latada de maracujás madurinhos que era uma
beleza. Não
resistiram a tentação e fizeram a colheita. Juca
era medroso, tinha
medo de doença, comeu apenas um e não deixou o
Lali comer mais de um.
Joanito não aceitou os conselhos e comeu à
beça. Quando regressaram, o
sol estava tinindo e o calor estava insuportável. E como era
a hora do
jantar voltaram correndo. Joanito chegou queixando-se de dor de
cabeça
e estômago pesado e foi direto para a cama. Passou a tarde
toda a
gemer. Mamãe ficou nervosa e mandou Branca preparar um
purgativo de sal
amargo enquanto ela cuidava da Stella que era novinha. Branca trouxe a
tisana mas Joanito botou tudo fora. Foi preparada outra dose e
Mamãe
mandou chamar Papai. Este veio e adulou o mais que pode o rapazinho e
nada alcançou. O pequeno era pirracento. Papai perdendo a
paciência
atirou a xícara com o remédio no chão
e sapecou boas palmadas no menino
e foi para o negócio: Mamãe acomodou Stella e foi
preparar novo
purgativo. Pôs o Joanito no colo, chamou as empregadas e
mandou que
elas segurassem os braços e as pernas e Branca apertasse o
nariz. Tudo
pronto, Joanito sem poder mover-se acabou gritando: "Pode virar". E foi
engolindo tudo. Só assim pode melhorar da
indigestão provocada pelos
maracujás.
Defunta Camila
Sa Maria
Luisa, uma velha
amiga de Mamãe, fez presente ao Lali de uma franguinha preta
e
arrepiada. Foi uma festa lá em casa. Todo o mundo queria
carregar a
franguinha. A pobrezinha não tinha o prazer de ir ciscar
lá no terreiro
no meio das companheiras. Andava de mão em mão.
Lali resolveu dar um
nome a bichinha. Depois de muito escolher acabou botando o nome de
Defunta Camila. Não sei explicar a origem desse nome,
só sei dizer que
a idéia foi do Lali.
Teve
início a odisséia da Defunta
Camila. Ela andava carregada d´aquí
pr´alí e passou a ser artista de
circo. Joanito e Lali arranjaram uma escadinha e começaram a
ensinar a
franguinha a subir e descer como fazia a artista de um circo que eles
assistiram. Era cada trambolhão que dava gosto! Tantas cenas
fizeram,
tantas mágicas, que a pobrezinha acabou morrendo. Lali fez
um berreiro
medonho pois não queria que a Defunta Camila morresse.
Depois de muita
choradeira resolveu enterrá-la pomposamente. Houve
acompanhamento e até
Banda de Música dos meninos.
E foi
assim
que desapareceu a Defunta Camila do Lali.
Quiquinha e as cantoras
Minhas
irmãs começaram a
aprender música com o tio Alexandre irmão de
Papai. Este, porém, não
chegou a ensinar quase nada porque adoeceu e morreu logo.
Tempos
depois
o nosso Vigário
sabendo que elas tinham boas vozes, convenceu a Papai que ele devia
mandar chamar em Ponte Nova o Sio João Raxa para continuar a
ensiná-las. Com a aquiescência do Papai ele se
encarregou da vinda do
Maestro, combinou com ele o necessário e as
lições principiaram. As
meninas estudaram a Artinha toda, começaram a solfejar e por
fim
estudaram cânticos religiosos.
Numa
festa do
Sagrado Coração de
Jesus elas estrearam no coro. Fizeram sucesso! João Raxa no
violino,
Zinha no harmônio Branca e Quiquinha cantavam, e eu...
escutava... Cada
vez mais entusiasmadas elas continuaram estudando. Aos domingos
cantavam durante a Missa. Sio Vigário vivia entusiasmado!
O coro
antigo
dirigido por Zé
Teodoro era composto das cantoras: Sa Severina, Sa Cute,
Anastácia, Sio
João Paulo e mais outras que não me recordo. Este
coro não foi posto de
lado e estava sempre a postos para o que desse e viesse.
Num
mês de Maria as cantoras
ensaiaram um canto que minhas irmãs haviam estudado.
Quiquinha, com o
pensar de criança, entendeu que elas não podiam
cantar aquele cântico
que era só dela, e planejou uma arte. Ficou caladinha porque
se Mamãe
soubesse não consentiria. Num domingo a Igreja estava
lotada. Papai e
Mamãe lá estavam conosco. A cerimônia
começou. O Vigário foi para o
altar. As virgens ao som de uma música adequada levaram a
coroa e
entregaram ao Sacerdote. Sio Zé Lopes balançava o
turíbulo e os
ajudantes tocavam as campainhas. O povo apreciava tudo silenciosamente.
E a reza prosseguia. Em dado momento os músicos
começaram a tocar a
introdução de um Hino a Nossa Senhora –
o tal que a Quiquinha havia
estudado. Sa Cute batia compasso e com as outras cantava fanhosamente.
Quiquinha não resistiu. Quando o coro fez uma pausa,
Quiquinha, do meio
do povo, principiou a cantar o mesmo canto com voz forte. Os
músicos
pararam e Quiquinha foi até o fim, não ligando as
sacudidelas da Mamãe.
O Vigário ficou suspenso encantado com aquela surpresa. O
povo não se
mexia; tudo em silencio encantado com aquela vozinha tão
bonita e tão
firme! Quando terminou o cântico, Quiquinha
começou a tremer, não sei
se de comoção ou medo de papai. Teve que sair da
Igreja. Na porta
encontrou-se com o Sio Tedolino que a levou até a nossa
casa. Ela foi
direitinho para a cama fugindo dos pitos de Papai.
A goiabada
Quando
chegava
a época de
fazer goiabada, era um reboliço lá em casa.
Despachava-se cedinho os
apanhadores de goiabas com os cargueiros e balaios. Era requisitado o
serviço de Manoela – minha saudosa babá
– para preparar o vasilhame, os
taboleiros para por as goiabas, lenha rachada aos montes, tachos
areiados e o terreiro varridinho. Era uma festa a chegada dos
cargueiros e a meninada queria ver despejar as goiabas nos taboleiros.
As mais gulosas – a principiar por mim – ficavam
ativas a espreita das
melhores goiabas inchadas e sem bicho. Mamãe logo o
serviço: limpava e
partia as goiabas e jogava nas gamelas e nós
íamos retirando as
sementes. Depois de lavadas, as goiabas eram postas no tacho para
cozinhar e em seguida eram passadas na peneira, e daí por
diante. Era
uma atividade que fazia gosto. As ajudantes tanto trabalhavam como
saboreavam o miolo mais durinho e sem bicho.
Já
era hora do jantar e a
cozinheira veio chamar Mamãe para arranjar os pratos.
Mamãe tinha o
hábito de arranjar as comidas no prato, arranjando tudo
direitinho,
para depois chamar o Papai. Nicota e Stella haviam ficado sozinhas no
quarto mexendo com as goiabas. A certa altura as duas
começaram a
discutir por causa da faca da Mamãe. Uma gritava: "Eu quero
a faca", e
a outra respondia: "Não dou pois quem pegou nela primeiro
fui eu.". E a
briga começou com trocas de xingamentos. Afinal, Nicota deu
um soco em
Stella e correu. Esta, não tendo tempo de retribuir, o que
fez? Atirou
a faca com toda a força, indo esta cravar na testa de Nicota
bem perto
da fronte. Foi uma gritaria medonha. Tanto gritava Nicota quanto
Stella. Branca veio correndo, arrancou a faca. Nicota
começou a gritar
mais ainda: "É no lugar que mata!". Quanto mais ela gritava
mais Stella
tremia e soluçava, pensando mesmo que Nicota ia morrer.
Custou a
convencer que o golpe não era mortal. E foi este o remate do
primeiro
dia de goiabada.
Complete o talher
Casa que
tem
muita criança
tem também muita arte. Quando a meninada não
está brigando, está
pintando o sete. Lá em casa era assim, muita gente, muita
barulhada e
muita arte. Com exceção de Branca que era mais
acomodada, o resto era
um Deus nos acuda! Vou relatar o que sucedeu certa vez a hora do
jantar. Papai ficava na cabeceira da mesa e nós ao redor.
Apesar da
sisudez de Papai – que era homem de pouca conversa
– a tagarelice
imperava entre a meninada. Mamãe era surda portanto
não percebia o que
se passava ao redor. E de mais a mais ela era muito condescendente com
os filhos. Pois bem; no meio da tagarelice Lali buliu com Stella
dando-lhe um apelido qualquer. Ela não aturava desaforo e
apanhou logo
um garfo e atirou com raiva e o garfo ficou espetado no
braço de Lali
que logo começou a chorar. Papai franziu a testa e todo
sério pegou
numa colher e passou para Stella dizendo: "Jogue isto
também, complete
o talher", fazendo alusão a faca que ela tinha atirado em
Nicota. E
Mamãe foi curar o braço de Lali.
Na Fazenda do Engenho
Com a
morte de
meus avós a
Fazenda do Engenho não podia ficar ao Deus dará.
Precisava de alguém
que assumisse o governo da mesma. Foi quando o tio Caetano abandonou a
clínica em S. Domingos do Prata e tornou-se fazendeiro. O
sistema da
fazenda foi todo modificado e o pessoal agia com mais liberdade. De vez
em quando, juntamente com Mamãe, lá vamos
nós numa cavalhada
desenfreada íamos tomar o Trem de Ferro em Rio Doce.
Chegando em Ponte
Nova rumávamos para a Fazenda numa alegria louca e
lá passávamos dias
inolvidáveis.
Numa das
vezes
em que estávamos
por lá, minhas irmãs, já
moças, gostavam de ficar à noite reunidas na
varandinha e a folia era certa. Cantavam modinhas, recitavam poesias,
brincavam de prendas, contavam histórias, numa folia louca!
Quanta
saudade daqueles bons tempos!
Certa vez
estavam reunidas na
varandinha e, apesar de mais criança, meti-me no meio delas
para tomar
parte na brincadeira. Era já noite escura, e naquela
época não havia
ainda luz elétrica. Todavia a escuridão
não tirava o entusiasmo da
turma. Mesmo sem acompanhamento, entoava-se modinhas –
algumas melosas,
outras mais alegres, cantava-se duetos, lundus, etc. E o tempo corria
alegremente. Em uma das noites, resolvi tomar parte na farra mesmo sem
jeito como era o meu feitio. Uma de minhas irmãs
propôs que eu
recitasse uma poesia. Não me fiz de rogada, e,
desajeitadamente,
comecei:
"Não
sei porque nasci!
Esta
existência inglória,
Que
arrasto a
gemer
Por
entre a
multidão,
Não
vale uma hora só.
Um
só momento,
De
uma estrela
a brilhar
No
azul do
firmamento,
Na
vasta
limpidez
Das
noites de
verão!"
E
concluí assim:
"Tenho
tédio de mim
E
de tudo que
me cerca
Dos
sonhos que
sonhei,
Dos
versos que
escrevi
Não
gosto dos rumores
Faustosos
da
cidade
Tenho
horror a
ciência
Odeio
a
humanidade!
Não
sei porque nasci!"
Pegando
na
deixa, tio Caetano que estava espichado num banco lá num
canto da varanda, interrompeu dizendo:
"Para
comer e
dormir."
A
gargalhada
foi geral e eu, encabulada, meti a viola no saco!
Casamento na roça
Lá
na minha terra era
costume quando havia algum casamento do pessoal da roça,
organizavam
uma cavalhada de homens e mulheres acompanhantes dos noivos. Entravam
no arraial numa galopeira louca e a poeira cobria toda a rua. Cada qual
queria fazer bonito. Os noivos iam na frente puxando a fieira e
atrás
vinham os homens e senhoras. Era divertido... Certa vez eu estava
debruçada na sacada apreciando o movimento. Cada qual queria
fazer
bonito para chamar a atenção.
Começaram a apeiar dos cavalos numa casa
perto da nossa. Foi quando uma mulata dengosa, para fazer bonito e
chamar a atenção deu uma chicotada na cara do
cavalo antes de apeiar. O
cavalo assustou-se, deu um pulo, empinou e deu com a cavaleira no
chão.
Esta levantou-se, com um riso amarelado, deu uma chicotada no cavalo
dizendo: "Êta cavalo marchadô e caidô!".
E foi entrando e sacudindo a
poeira da montaria.
Mingau...
Na
Fazenda de
meus avós em
Ponte Nova, desde os tempos da escravatura havia sempre um homem
encarregado da administração do
serviço. Feitorava tudo e era sempre o
escolhido para os mandados do Patrão.
Do tempo
da
escravatura nada me recordo pois eu ainda não era gente
observadora quando se deu a Abolição,
Quando o
Tio
Caetano assumiu o
governo da fazenda após a morte de Vovô, havia
já na casa um feitor de
nome Honório. Ele era casado com Cidina e tinha sua
residência mesmo no
terreiro da Fazenda. Sio Honório era "pau prá
toda obra". Sabia agradar
as crianças e era muito acatado pelos maiorais. Sendo
"Persona grata"
andava por toda a parte, sempre solicito.
Certo dia
Sio
Honório adoeceu.
Veio o médico, examinou-o e achou que o caso era complicado.
Era uma
moléstia rebelde e aos poucos Sio Honório ia
definhando. Em toda parte,
nestas circunstâncias, há sempre alguém
que ajuda a cuidar do doente,
dando remédios, banhos etc. Falam em confissões e
prontificam em chamar
o Padre.
Sio
Honório ia piorando sempre,
arquejava muito, mas ainda não tinha perdido o apetite. Como
os
presentes notaram que a morte andava rondando, um dos assistentes
prevendo o próximo fim, foi para perto do doente e rezando
falou-lhe
aos ouvidos: "Honório, diga Jesus!" e ele replicou logo com
voz ainda
forte: "Não digo". Cidina estremeceu e foi para perto e
passando-lhe de
leve a mão pelo rosto, disse: "Meu bem, diga Jesus" e ele,
numa voz
ainda forte, olhando para ela disse: "Mingau". E começou a
arquejar nas
ancias da morte. Cidina em soluços prevendo o fim, repetiu a
frase
quase soluçando: "Honório, meu bem, diga Jesus!"
E o doente a expirar
murmurou com voz entrecortada: "Min-ga-u" e expirou.
No radio.
Fui a
Ouro
Preto visitar a
minha amiga Matilde Baêta da Costa que era, como eu,
radioamadora. Seus
Pais ainda eram vivos, por conseguinte a alegria imperava em sua casa.
Foi um passeio que proporcionou-me horas agradáveis das
quais guardo
saudosa recordação. Como radioamadora, Matilde
fez conhecimento com
meio mundo e era incansável em prestar favores. Passava
grande parte do
tempo em rádio e tinha assunto para todo o mundo...
Numa das
noites em que lá passei,
Matilde ligou o transmissor e passou-me o microfone, para eu fazer um
chamadito. Prontamente pus-me a gritar: "PY4IP chama geral do chaque de
PY4LQ" e por aí a fora. Desligava o transmissor, corria a
faixa, e nem
uma resposta. Teimosamente eu continuava a chamar e o silencio
continuava imperando... De uma feita eu termeinei o chamado da seguinte
forma: "Eu sou capaz de mandar um beijo para quem responder ao meu
chamado". Desliguei na certeza de que ninguém responderia.
Mas a
resposta veio logo: PY4AG está respondendo o seu chamado.
Era o saudoso
Cônego Trindade que sem dúvida queria apreciar o
meu embaraço.
Voltando
para
ele, veio-me na
hora H uma boa resposta. Ei-la: "PY4IP volta para PY4AG
única
contestação ouvida". Depois dos agradecimentos de
estilo eu disse:
"Cônego Trindade, conforme prometi, beijo respeitosamente as
mãos de
Vossa Reverendíssima". A minha saída provocou
riso. E encerramos a
brincadeira. Recordando este QSO, sinto imensa saudade dos bons tempos
de radio.
Profanação.
Lá
na minha terra, num
Domingo a hora da Missa, ao Evangelho, o Vigário, todo
embaraçado, com
voz tremula avisou a assistência que durante a noite
anterior, um
malfeitor havia entrado na Igreja e violado o Sacrário,
retirando deste
o relicário onde estava a sagrada Hóstia. Mal
acabou de dar o aviso,
houve um zum-zum nos corredores e um punhado de homens saiu
alvoroçado
da Igreja. O Vigário havia dito que era
necessário procurar o malfeitor
para recuperar o relicário roubado.
Ao sair
da
Igreja o grupo
combinou dar uma batida pelos matos em busca do sacrílego.
Antes porem
sondaram e ficaram sabendo que havia surgido lá no
Lôbo um sujeito que
levava consigo uma caixinha dourada tendo dentro uma rodelinha branca
parecendo Hóstia. Com este conhecimento, foram todos pela
estrada do
Lôbo a procura do malfeitor. Num casebre à beira
da estrada foi
encontrado o homem que começou a tremer quando viu tanta
gente.
Respondendo as perguntas que lhe fizeram confessou ser ele o autor do
roubo e pediu pelo amor de Deus que não lhe tirassem a vida.
Perguntaram onde estava a caixinha dourada e ele disse que estava
escondida no mato. Com todo o jeito convenceram-no a ir mostrar o lugar
onde estava a Hóstia. Ele foi todo trêmulo,
penetrou num matagal, e
depois de ter andando um pouco, parou e disse: "É aqui". O
pessoal com
todo o respeito retirou o mato que cobria o lugar e encontraram o
relicário contendo a Sagrada Partícula. Com o
máximo respeito, o
escrivão – homem probo – colocou o
relicário em cima de uma toalha que
ele havia levada com precaução, retirou do bolso
uma vela, acendeu-a,
montou a cavalo, e com a turma rumou para o arraial. O criminoso foi
com os braços amarrados e com o chapéu na
cabeça para ser identificado.
O trajeto foi feito vagarosamente, aumentando o número pelos
moradores
das casas onde passava a procissão. Rezavam e cantavam hinos
sacros com
fervor e respeito. Na entrada do arraial, os negociantes cerraram as
portas e seguiam com o povo que era aumentado pelos moradores do lugar.
Os sinos repicaram até a entrada do Santíssimo na
Matriz. O Vigário
estava paramentado e recebeu do Escrivão o
relicário, o qual foi
depositado no Altar. Após ligeiras e emocionantes palavras o
Vigário
deu a Benção com o S.S.Sacramento. logo
após convidou o povo para fazer
uma Novena de Desagravo. Enquanto isto, o povo fervilhava na rua
querendo linchar o infeliz. Foi preciso que um dos circunstantes
abraçasse o criminoso e assim ele foi levado para a Sapucaia
(prisão).
No dia
imediato ele foi levado
para a Cadeia de Ponte Nova onde esteve até serenar os
ânimos. Foi
posto em liberdade porque ficou provado ser ele um
irresponsável – um
tarado.
A
impressão deste fato perdurou
por muito tempo. Receava-mos que a nossa Matriz ficasse interditada
como sempre acontece em casos semelhantes. Mas as
circunstâncias
relevaram a falta.
Passeio magnífico.
Em
janeiro de
1913 demos
um passeio magnífico! Mamãe havia prometido a
Mariana, esposa de
Astolfo Batista, ir com a turma passar uns dias com ela na
Saúde. Com a
promessa feita, o jeito era ir mesmo, pois recebíamos
recados uns sobre
outros reclamando a nossa ida.
Em
princípio de janeiro, como o
dia estava propício para viajar pois a chuva deu estiada,
arrumamos
tudo para irmos tomar o Trem em Rio Doce. Um grupo foi a cavalo e outro
em carro de bois. Éramos 6 pessoas no carro. Na comitiva
não havia
homens. De Santa Cruz a Rio Doce a viagem foi péssima devido
estar a
estrada cheia de lama devido as chuvas caídas nos dias
anteriores.
Gastamos 5 horas no trajeto. Em Rio Doce tomamos o Trem depois de
pequena parada na casa do nosso bom amigo Sr. João Paulo.
Pela Estrada
de Ferro a viagem foi ótima, alegrada com a folia da turma.
Encontramos
na Estação de Saúde os nossos amigos:
Alvaro, Astolfo e filhas. Fomos
recebidas com demonstração de alegria.
Só faltou Banda de Música e
foguetório... Foram magníficos os dias em
Saúde – hoje D. Silvério – e
deixaram muitas saudades. Reviramos o arraial de ponta a ponta e
ficamos conhecendo muita gente. Assistimos uma festa Religiosa; fomos
ao Cinema. Fomos também a um teatro de amadores onde levaram
dramas e
comédias. Os atores não eram maus e estavam bem
ensaiados. Nossa turma
era grande, teve de partir ficando uns em casa do Alvaro e outros em
casa do Astolfo. Em ambas as casas a folia era grande. Ao anoitecer a
rapaziada surgia com violões ora em uma casa, ora noutra. A
orquestra
era boa. Cantávamos modinhas, recitávamos,
dançávamos e ... pintávamos
o sete até tarde da noite.
Foi com
sincera saudade que nos
despedimos de gente tão boa! No Trem pintamos e rabiscamos
até chegar
em Rio Doce onde encontramos o necessário para chegar em
casa – carro
de bois e cavalos. Paramos pouco em Rio Doce, tomamos as
conduções e
rumamos para Santa Cruz. A viagem de regresso foi melhor porque
não
havia tanta lama. Tendo decorrido uns dias deliberei a escrever uma
carta ao Alvaro e foi carta rimada, a qual transcrevo:
Alvaro
Batista
Prezado
amigo,
eu vou dar-te
Noticia
minuciosa
Desde
o
momento tristonho
Da
partida
dolorosa.
Em
versos
faço esta carta
Eu
quero
escrever em rima
Se
são bem feitos - não sei.
Não
sei se são: "Obra prima"
De
manhã partimos todas
Em
demanda da
Estação
Tendo
um
sorriso nos lábios
E
a
mágoa no coração.
Conosco
foi
muita gente,
Até
mesmo namorados...
Ficamos
todas
confusas
Com
tanto zelo
e cuidados.
Quando
o
feioso do Agente
Pegou
na corda
e fez: dém!
Muita
gente
quis chorar...
Até
eu, chorei também.
Nicota,
a
pobre coitada,
Ficou
num
canto em silêncio
Curtindo
grande saudade
Do
teu
vizinho, o Fulgencio.
A
Zinha, veio
cantando
Com
um ar todo
matreiro
Uma
valsa
maviosa
Dos
tais Jovinos
Cordeiro.
Stella,
que
tem suas partes
De
muita
moça bonita...
Veio
jurú
lá num canto
Desenrolando
sua fita.
Nos
fez perder
a paciência
Perdi
quase a
estribeira
Nunca
vi
berreiro assim!
Nunca
vi tanta zueira!
Prá
não chorar eu chupava
Umas
mangas
saborosas
Que
iam
cortando aos poucos
As
saudades
dolorosas!
O
resto... eu
não conto não.
Talvez
fique
p´r´outra vez.
Escreverei
com
vagar
Em
princípios de outro mês.
Se
te amolei
com meus versos
Peço
perdão, meu amigo.
Quero
ser
breve – não posso!
Falar
pouco...
Não consigo.
Envio
boa
remessa
De
saudade
– em sacos novos
Para
ser
distribuída
Entre
as povas
e os povos
Adeus!
Eu vou
terminar
Não
julgues que seja pêta
Recebe
muita
saudade
Da
amoladora
Georgêta.
Carnaval - Contrato de casamento
Como
radioamadora
conquistei na faixa muitas amizades. Algumas conservo até
hoje, Deus
louvado! Conservo na memória alguns comunicados dos quais
guardo
saudosas recordações.
De um
deles
vou relatar embora
palidamente. Certa noite eu estava em comunicado com Alvaro Caetano
(PY4IW). No decorrer da prosa ele perguntou-me se eu havia falado com
PY4JG lá de Uberaba. Com a minha resposta negativa, ele me
disse que
valia a pena eu tentar, pois tratava-se de um rapazinho 100%.
Então ele
combinou comigo um comunicado para o dia seguinte. De acordo com o
combinado, no horário aprazado, lá estava eu na
"coruja" aguardando o
chamado de PY4IW. E foi em companhia do Alvaro que entrei em contato
com o rapazinho que de fato era 100%. Sua prosa era insinuante, assim
como o seu modo de rir e brincar. E foi assim que granjeei na faixa
mais uma amizade. E nossos comunicados passaram a ser
diários. Por
ocasião do Carnaval arranjamos uma brincadeira interessante:
PY4JG
tornou-se meu namorado e em seguida ficamos noivos. E as
declarações de
amor andavam de parte a parte durante os 3 dias de Carnaval. Parecia
mesmo que Cupido estava arranjando um negócio muito
sério. No último
dia de Carnaval entramos em comunicado com o entusiasmo costumeiro pois
era o último dia e o Carnaval ia deixar saudades! Antes de
terminar o
comunicado, resolvi desmanchar o noivado. PY4JG ficou surpreso e
zangado. Em vista de minha atitude ele pediu-me que lhe devolvesse o
anel de noivado que ele havia me dado. Respondi-lhe: "A palavra
devolvo, mas, a aliança vai fazer parte da minha
coleção, ficando
também como recordação do nosso
noivado". Ele protestou, implorou,
xingou, mas eu fiquei irredutível. E assim terminou a nossa
brincadeira
de Carnaval. PY4JG é hoje PY1PA e é marido da
minha sobrinha apelidada
por ele de Canarinho nos nossos comunicados. Confesso que esse
comunicado me deixou saudades...
Otilia
Foi no
ano de
1898 que
entrei para o Colégio de Nossa Senhora Auxiliadora em Ponte
Nova.
Papai, já cansado de minhas artes, depois de uma briga que
tive com
Joanito, tomou uma séria resolução,
mandando que a Mamãe preparasse meu
enxoval para eu ir para o Colégio porque eu estava
insuportável e era
necessário meu internamento. A palavra
internamento soou mal em
meus ouvidos. O que viria a ser aquilo? Fiquei apavorada ruminando
aquela ordem severa e o significado da palavra. Aos poucos fui me
acostumando e acabei esquecendo do internamento e já estava
aflita que
chegasse o dia de partida, pois para mim seria uma grande novidade. Fui
para o Colégio. Mamãe ficou chorando quando me
abraçou, mas, eu tentei
chorar e ... cadê lagrima?
Ansiosa
pela
novidade, eu queria
rir e não chorar... E lá fui eu para o
Colégio, saindo de casa pela
madrugada cavalgando o célebre cavalo baio em demanda do
Trem de Ferro
na Estação do Rio Doce. Tudo era novidade para
mim!
Chegando
em
Ponte Nova fui
diretamente para a Fazenda do Engenho e no dia imediato rumei para
Palmeiras onde divisei o casarão que ia me acolher.
Disseram-me que ali
fora uma fazenda do Coronel Soares. Este, ficando viúvo,
não quis mais
saber de fazenda e tratou de vendê-la para cuidar de outros
negócios.
Entrei na
portaria do Colégio
toda desconfiada, tendo sido recebida por D. Zéca. Fomos
introduzidos
no locutório, vindo em seguida a Diretora I. Maria Coussirat
que
conversou com Papai, tendo este apresentado os documentos exigidos
pelos Estatutos. Depois fez o pagamento e tratou de retirar-se,
abraçando-me e fazendo algumas
recomendações. Em seguida D. Zéca
conduziu-me para o recreio onde as meninas brincavam de "chicotinho
queimado", assistidas por uma Irmã. As alunas pararam com o
brinquedo,
rodearam-me, fazendo-me perguntas, cada qual falando mais,
até que
conseguiram desembuxar-me. Entrei nas conversas e em pouco tempo era
senhora da situação.
Decorridos
alguns dias,
estava-mos fazendo recreio em frente ao prédio andando para
lá e para
cá, ouvindo a prosa da I. Assistente. Depois fizemos roda e
começamos a
cantar: ‘Ca nas Palmeira", e cada qual gritava mais. E eu
comecei a
entoar também... No fogo do entusiasmo, vimos entrar pelo
portão da
frente uma família composta do casal, uma mocinha e uma
criança
acompanhada da Babá. As meninas mais antigas no
Colégio começaram a
gritar: "Otilia, Otilia", e a mocinha veio correndo
abraçando a Irmã e
as colegas. Nós, as novatas, ficamos na rabadeira, mas
Otilia não se
fez de rogada, nos abraçando e puxando conversa com uma e
com outra e
foi granjeando simpatia das novatas. Entrona como sempre, fui
cumprimentar o Sr. Manoel Egidio e D. Bela. E fui puxando conversa
até
que ouvi o sinal da sineta. Despedi-me e fui correndo para a fila,
contente com o conhecimento adquirido. Seja dito de passagem:
Simpatizei-me muito com o casal. E lá se foi mais um dia de
Colégio,
Simpatizei-me
tanto com Otilia,
que acabei tornando-me sua amiga e fã fervorosa. E quando
Sr. Manoel
Egidio voltou para Caratinga, já sabia que Otilia tinha
conquistado
mais uma amiga.
E os dias
foram correndo e a
amizade foi crescendo, crescendo... criando raízes
tão profundas que o
tempo não conseguiu destruir, embora já tenha
decorrido 66 anos e
morarmos distantes uma da outra.
Isto
é brincadeira? Não! É amizade que nos
acompanhará enquanto vivermos.
Ainda no Colégio
Nossa
história não podia ficar só
num capítulo, vai mais longe, embora reduzida. Eu era maluca
pelo
Colégio porém detestava estudar. Que bom seria se
aquela prisão fosse
só de brincadeira! Nada de estudos. Seria muito mais
interessante! Mas,
era preciso estudar, que fazer? Não posso explicar a
razão da minha
amizade com Otilia. Éramos da mesma idade mas os
gênios eram
diferentes. Ela – bem comportada, eu –
insuportável. Como podia ser
isto? Otilia era estudiosa, talentosa, bem comportada, tanto que fazia
parte do capitulo da Pia União. A sua folha corrida era uma
beleza! Eu?
Pobre de mim! Vagabunda toda vida. Só estudava meios de dar
trabalho as
Irmãs. Apesar disto tudo eu tinha um it
que prendia a mocinha.
Ela cansava de aconselhar-me mas, era mesmo que pregar no deserto.
Otilia, boníssima como era, tinha um grande defeito: era
ciumenta. Vou
relatar uma cena provando que não estou mentindo. Arquitetei
uma arte,
e esta Otilia devia ignorar senão ela iria atrapalhar-me.
Procurei
então outra companheira, esta bem mais moça do
que eu: Nitinha do Grão.
A hora do recreio agarrava-me a ela e olhava a Otilia só de
longe. Era
arte e mais arte e os pitos das Irmãs não
cessavam. De comportamento
nunca tirei a nota 10. Certa vez arranjamos uma latinha vazia e
tratamos de escondê-la numa greta esperando a hora da arte,
Numa tarde,
burlando a vigilância das Irmãs, fugimos e fomos
parar na horta – lugar
proibido para nós. Por lá ficamos algum tempo.
Passando por perto de um
rego d’água, notamos uma quantidade enorme de
sapinhos. Como eram
interessantes aquelas bolinhas pretas com rabinho, nadando de um lado
para o outro! Surgiu-me então uma ideia:
criação de sapinhos. Mandei
Nitinha buscar a lata e comecei a pegar os sapinhos. Êta
bichinhos
espertos! Foi um custo apanhar uma dúzia no meio de centenas
deles.
Nitinha trouxe a vasilha e eu disse para ela: "vamos fazer uma bela
criação de sapos". Joguei dentro da lata os
bichinhos que já estavam
com saudades da água e rumamos para o recreio, pois
já estava na hora
da sineta dar o sinal. Corremos no refeitório, arranjamos
umas migalhas
de pão, jogamos dentro da latnha e ela ficou guardada num
cantinho bem
escondidinha. Era nossa delícia no recreio brincar com os
bichinhos! A
arte foi descoberta, deram consumo nos sapinhos e... naquela semana
houve grande baixa nos nossos pontos. Otilia ficava de longe observando
o progresso do meu agarramento com Nitinha. Ficou com tanto
ciúme que
me mandou a prova escrita num santinho que tenho guardado com muito
carinho. Disse que eu estava desprezando as amizades velhas por
amizades novas, etc. Coitada! Morria de ciúmes! Cansada de
fazer
pirraça, resolvi fazer as pazes, embora não
tivesse havido briga entre
nós... E a nossa amizade continuou firme até
sairmos do Colégio e nos
acompanhará até ao fim da nossa vida.
XXX Fim da Parte I
XXX
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