Introdução

É com vivíssimas saudades que venho recordar um bocadinho da minha infância tão cheia de artes, deixando aqui retratadas algumas, cuja lembrança perdura em minha memória. Como alguém já disse que "recordar o passado é viver outra vez", com os meus 80 janeiros transporto-me a mais risonha e feliz quadra de minha vida: minha infância e minha adolescência.

Chamando a atenção de meus leitores, digo: sempre fui péssima estudante, portanto longe de mim a idéia de ser literata. Concluindo, deixo aqui a seguinte quadra:

Iniciando as Memórias
Eu vou dizendo também:
Cada qual dá o que pode,
Cada um dá o que tem.

1964                            Georgeta




Página inicial com a dedicatória de Auxiliadora, Eurico e filhos para Dodoge,
no caderno onde ela escreveu suas memórias.

Dedicatória



Verso da capa onde Dodoge oferece este caderno para Tio Lali e Tia Nieta.

Na penúltima folha do caderno ela deixou escrito:

Ofereço este caderno
Ao Lali e a Nieta.
É uma recordação
Da pobre velha Georgeta.

Ao Lali e a Nieta

Na última página ela escreveu esses versos:

Encerrando.

Não deixo nada de bom
P'rá Vocês, quando eu morrer
Apenas "Minhas Memórias"
É que posso oferecer.

Nuns garranchos mal traçados
Sensaborias sem fim,
Vocês lerão muita cousa
E se lembrarão de mim.

Quando eu partir desta vida
Não dispenso uma oração.
Minha benção para todos
E tambem meu coração

Eurico e Auxiliadora
Meus netinhos - vida minha!
Não se esqueçam, por favor
Da pobre velha


                                         Dindinha







LEONOR

Escrever alguma coisa fazendo alusão a minha sempre chorada e querida Leonor, é tarefa difícil porque sinto acordar a saudade adormecida em meu pobre coração. Esta saudade nunca desaparece, me acompanha sempre e sempre.

Sei que ela está muito melhor na outra vida na companhia de nossos pais e Branca, não acontecendo o mesmo comigo, pois apesar de rodeada de afetos dos meus este não substitui a falta que sinto dela. Todavia não posso deixar que ela fique esquecida porque citarei os nomes de todos os meus irmãos.

Nuns versos que fiz comemorando o 1º aniversário de sua morte, está retratado o que me vai n`alma.

 

LEONOR

Vossa vontade seja feita em tudo!
É isto que vos digo, meu Senhor.
Levaste para o Céu o meu tesouro.
A minha muito amada Leonor.
Sofri e sofro muito, bem sabeis.
Não tem limites minha soledade!
Sem revolta, meu Deus, eu vou sofrendo
As agruras cruéis de atrós saudade!
E digo sempre com sinceridade:
- Seja feita, Senhor, Vossa vontade!

 

PAPAI E MAMÃE

Não sei qual dos dois era o melhor?! Parece-me que ambos foram feitos da mesma massa e talhados para formar um casal exemplar. Deus caprichou deveras!

Quando papai pediu a mamãe em casamento, houve uma relutância da parte de Vovô porque o irmão mais velho dele, casado com uma irmã de mamãe, os dois não tinham os gênios compatíveis. Vovô teve receio de suceder o mesmo com outro genro e foi franco. Papai afiançou-lhe que ele não se arrependeria se desse o consentimento. De fato ele foi um marido exemplar e mamãe julgava-se muito feliz. Ela atendia a todas as razões de papai. Viveram muito felizes, Deus louvado!

Na vida deles houve um grande abalo: foi quando incendiou-se a nossa casa, queimando tudo, salvando com os moradores, bem pouca coisa.

Era recente a instalação da casa comercial, todo o estoque era novo, de sorte que foi tudo por água abaixo, deixando meus pais desolados.

Com a família crescendo, papai não podia desanimar, tinha que reagir. Começou a vida de novo. Vovô emprestou-lhe dinheiro e ele como era corajoso e trabalhador, venceu, embora não amealhasse fortuna. Construiu uma casa confortável e pode educar os filhos.

Depois de uma moléstia prolongada veio a falecer na Fazenda do Engenho, no dia 25 de outubro de 1909, sendo sepultado no mausoléu da família de mamãe em Ponte Nova.

Mamãe era de uma bondade inigualável. Soube criar os filhos sempre unidos e esta união perdura até hoje. Viveu ainda alguns anos, sempre boa, sempre caridosa. Faleceu no dia 25 de abril de 1928 após grandes sofrimentos e foi sepultada junto de Zito, Ioió e Arthur ().

 

BRANCA

Será que conseguirei escrever algo que dê a idéia do que foi a nossa querida Branca? Vou tentar embora espere um fracasso.

Branca era a nossa irmã mais velha. Possuía um coração feito a capricho por Deus. Com nossos pais, ela foi de uma dedicação fora do comum! Por ocasião da moléstia que levou papai a sepultura, Branca foi uma heroína. Quando o Dr. Cupertino examinou papai, vendo que o caso era perdido, foi franco com Branca. Precisava que alguém da família fosse inteirado do que estava para acontecer. Ela, sabedora de tudo, guardou reserva, sofrendo sozinha pois achou que devia ocultar de mamãe, pois que ela sofreria muito enquanto durasse a enfermidade. Permaneceu como enfermeira ao lado de papai acompanhando passo a passo o desenrolar dos acontecimentos. Foi de uma dedicação invulgar!

Como irmã, não podia ser melhor, era solícita com todos nós.

Causou-nos grande surpresa o seu casamento. Morou uns tempos em Belo Horizonte e mais tarde voltou para Santa Cruz, permanecendo em nossa casa até quando nasceu a 1ª filha de Auxiliadora.

Quando Lali mudou-se para Belo Horizonte ela voltou para me fazer companhia e nunca mais nos separamos. Morávamos em Mateus Leme quando ela faleceu repentinamente no dia 12 de maio de 1953. Com sua morte tive um abalo muito grande. Perdi a minha segunda mãe. São imensas as saudades que sinto dela, tão boa, tão dedicada!

 

ZITO

Eu tinha um irmãozinho muito bonitinho, louro, corado e gordinho. Chamava-se Luiz e tinha o apelido de Zito. Era uma criança vivaz, dócil e era o encanto de meus pais.

Ele tinha apenas dois anos de idade e era o 3º dos filhos pois até então só tinha nascido mulheres.

Zito era travesso e irrequieto e todo o mundo gostava dele.

Um dia estávamos descascando amendoim junto a sacada e atirando as cascas na rua. Zito de vez em quando tirava um grão e comia e nós achávamos graça naquilo. Ignorávamos o mal que podia fazer ao menino; foi quando a Ióió viu e deu o alarme, retirando-o de perto. Passadas algumas horas, Zito começou a passar mal com febre alta, dando convulsões e perdendo até o sentido. Mamãe ficou desnorteada, mandou chamar papai e este achando o caso sério, mandou incontinente chamar o Dr. Felipe em Rio Doce. Este veio logo e ao examinar a criança desnorteou-se pois percebeu logo que o caso era grave. O coitadinho foi dando convulsões até que expirou nos braços da mamãe.

Coitada! Ficou como louca vendo seu filhinho morto em seus braços. Ficou agarrada com ele até que o vestissem para ser enterrado. Vestiram-no de Padre, com batina e barrete cor de rosa e sobrepeliz branca. Puseram-lhe nas mãos um livrinho como se ele estivesse lendo. Apesar de minha pouca idade lembro-me de tudo, pois o que presenciei causou-me profunda impressão.

A saída do enterro mamãe ficou num desespero louco, muitos dias permaneceu fechada no quarto chorando sem consolo. Coitada!

Depois ela ponderou que os outros filhos precisavam dela e teve que reagir. O óbito deu-se no dia 4 de abril de 1891. Bem mais tarde mamãe foi sepultada junto do filhinho querido.

Papai brincava sempre dizendo que os 3 filhos estavam destinados para Medicina, Farmácia e Sacerdócio. O que ele pensou realizou-se: Joanito é médico, Lali farmacêutico, e o sacerdote voou para o Céu.

 

IOIÓ

Foi no dia 25 de novembro de 1927 que deixou de existir a nossa sempre lembrada Ioió. Santa velhinha, tão boa, tão dedicada! Sua lembrança jamais se apagará da memória daqueles que provaram com ela. Em sua vida deixou um exemplo de amor e dedicação extraordinário. Ioió foi escrava do proprietário da Fazenda do Engenho em Ponte Nova e foi Babá de uma de suas filhas. Dedicadíssima ao extremo, tudo fazia pela sua sinhazinha que era a minha mãe. Os anos foram correndo e a menina ficou moça e como tal foi pedida em casamento. Na véspera das bodas, vovô querendo recompensar tanta dedicação da pobre escrava, entregou a mamãe, para que ela desse a sua babá, a "carta da liberdade" no dia de seu casamento.

Ioió foi chamada e na presença de toda a família reunida, mamãe muito emocionada lhe falou: "Ioió, você não é mais escrava. De agora em diante você é livre, pode ir para onde quiser. Está aqui a sua carta de alforria como recompensa do quanto fez por mim."

Ioió com os olhos rasos de lágrimas, recebeu o papel e de joelhos abraçou a sua querida sinhazinha, ou antes Sanica, e disse entre soluços: "Não quero a liberdade! Serei sempre escrava de minha filha branca. Acompanha-la-ei para onde ela for." E rasgou a carta em muitos pedaços com espanto dos que assistiram a cena.

E viveu uma vida longa e ajudou a criar com a mesma dedicação os 10 filhos de meus pais.

Veio o 13 de Maio tão suspirado pelos escravos. Todos ficaram livres porém Ioió continuou sob o teto acolhedor de sua filha branca.

Morreu com quase 100 anos, 6 meses antes da morte de sua querida Sanica.

 

LALI

Depois de ter prestado uma pequenina homenagem aos entes queridos que partiram desta para melhor vida, minha gratidão reclama alguma coisa para aquele que substituiu papai e que é para mim a melhor das criaturas: Lali.

Não encontro palavras para defini-lo, portanto resumo em duas o que ele é: um justo! um santo!

Coloquei-o num altarzinho erigido em meu coração e como adorno apenas duas flores: amizade e gratidão!

É tudo que posso dizer deste irmão tão bom e tão querido!

 

A vitrola e os discos

Como gostava de música a minha saudosa Leonor! Muitas vezes ela estava entretida brincando com as bonecas, quando ouvia o som do piano numa música que ela apreciava e era executada por Sinhá, ela deixava os brinquedos e ia para a "sala grande" e ficava sentadinha perto do piano. Ao terminar a música, Sinhá dava-lhe um caderno de músicas publicadas pela revista "O Malho", para ela escolher a música que desejasse. Ela folheava tudo até encontrar a favorita e dizia: "É esta. É Ramona". No entanto ela não sabia ler. Quer dizer que na aludida música havia um sinal qualquer que ela distinguia. Por causa deste prazer de ouvir música, compramos para ela uma vitrola pequenina e alguns discos. Dondona mandou-lhe mais uns e ela ficou com uma bela coleção de...porcarias...

Ela passava as vezes o dia todo a moer a tal vitrola. Os discos eram quase sempre interrompidos por falta de corda no aparelho. Era um angu de caroço que atordoava a cabeça da gente.

Um belo dia, a vitrola resolveu a ficar parada; a corda tinha arrebentado. Leonor ficou zangada, socava a vitrola, dava corda, e...nada! Desanimada, em vez de guardar os discos, resolveu a jogá-los da janela do quarto dela lá no terreiro, espatifando tudo. E...era uma vez uma vitrola, a diversão da pobrezinha.

 

Tio Fonseca

Fizemos amizade com um fotógrafo ambulante vindo lá da cidade do Pomba. Ele esteve hospedado uns dias em nossa casa. Como ele era muito bonzinho, procurou o mais possível agradar a Leonor porque percebeu logo que ela era o nosso Ai! Jesus! De maneiras que a Leonor acabou familiarizando-se com ele. Quando Tio Fonseca foi-se embora, Leonor sentiu muito e vivia falando nele. Para matar a saudade ela arranjou um pedaço estreito de tábua grossa e alguém pintou nele uma cara e disse que era o retrato de Tio Fonseca. Ela ficou toda contente e não se separava dele. À hora de dormir, Tio Fonseca ia para o cantinho da cama dela. Certa noite, não sei o que ela arranjou que Tio Fonseca foi parar debaixo da cama. Leonor acordando sentiu falta do companheiro e começou a remexer e a chorar até que o papai acordou e foi verificar de que se tratava. Com aquele movimento mamãe acordou também toda assustada queria saber de que se tratava. Então papai lhe disse: "Ela está chorando porque Tio Fonseca caiu debaixo da cama".

Tratou de descer, arredou o catre que ficava lá no cantinho da cama dele e apanhou o rapazinho causador da barulheira. Só assim a Leonor conseguiu aquietar-se e dormir outra vez. Esta amizade com o pedaço de tábua foi duradoura. Leonor custou a se esquecer de Tio Fonseca.

 

Com Deus e as almas

Tia Ana é o nome de uma senhora vinda lá das bandas de Sant’Ana e empregou-se lá em nossa casa. Com ela veio uma filha de uns 10 anos, mais ou menos, muito franzina, não obstante era sadia. Leonor tomou amizade a garota e esta lhe obedecia cegamente. As ordens mais absurdas Conceição executava prontamente.

Em nossa casa havia um quarto denominado Quarto Novo, e era nele que a Leonor passava os dias entretida com os retalhos e uma infinidade de bonecas de todo jeito e feitio. Ali ela ficava picando os retalhos e costurando a seu modo...até a tardinha quando saía a passeio, indo, as vezes, em casa de Sinhá e, quase sempre no adro da igreja passando pela rua de cima. Ficava horas inteiras a socar pedras moles. Muitas vezes ela brincava com as meninas da vizinhança, fazendo cosinhado de mentira. Era esta a sua vida quando não tinha aquelas crises nervosas.

Com a chegada da Conceição, Leonor ficou reinando: mandava e desmandava à vontade e a menina obedecia sem trepidar.

No Quarto Novo havia sempre uma esteira estendida no chão e era lá que a Leonor ficava sentada, rodeada de malas cheias de bonecas e retalhos. A tesoura trabalhava toda a vida e não havia retalho que chegasse. Às vezes, não sei porque cargas d’água, dava-lhe na veneta de jogar os retalhos em cima do telhado de um paiol que havia embaixo da janela. Certa vez ela remexeu as malas todas procurando um retalho, até que resolveu ir à janela observar se estava no telhado. Vendo o retalho, chamou por Conceição e mandou que ela fosse buscá-lo. Da janela apontou para o telhado cheio de retalhos. Conceição, querendo obedecer, chegou à janela, mediu a distância e teve medo. Mas a Leonor não tomou conhecimento e disse para ela: "Pula, Conceição, com Deus e as almas". A menina criou coragem, sentou na janela e foi resvalando até cair no telhado. Felizmente só levou susto. Ela era tão leve que nem quebrou as telhas. Da janela Leonor apontava os retalhos: a menina apanhava e ela dizia que não era aquele, até que enfim acertou. Leonor deixou a janela e foi cuidar das bonecas e Conceição ficou sem saber como ia descer e começou a chorar alto. Por um acaso Branca passou pela varanda e viu a garota no telhado. Adivinhou logo ser arte da Leonor pois a pequena trazia as mãos cheias de retalhos. Branca disse a ela que esperasse um pouco que ela ia arranjar uma escada. A menina deixou de chorar e desceu pela escada segurando sempre os retalhos. Foi diretamente ao Quarto Novo para entregar a Leonor o que ela queria.

Depois... foi beber água por causa do susto...

 

Na loja do Papai

Eu gostava muito de ficar na loja do papai. As vezes auxiliava atendendo a freguesia. Já sabia vender cravo, canela, erva-doce e até sal amargo. Colocava direitinho no lugar competente o produto das vendas. Mas..., quando ficava sozinha, metia a mão dentro da lata de fumo desfiado, tirava um punhadinho, arranjava palha e um tição e corria para a horta e lá tirava boas fumaças. As vezes eu sentia tonteiras por falta de hábito e corria para a cama onde tirava boa soneca. E ninguém descobria a minha arte.

Uma vez, apareceu lá no negócio a Sra. Rosa, esposa do Sr. Domingos de Ramos. Ela queria comprar uma chita e papai desceu da prateleira diversas peças. Eu estava atenta vendo a freguesa escolher. Afinal a Sra. Rosa separou uma peça e disse: "Sr. Capitão, pode tirar 5 metros dessa, que está me agradando". Papai abriu a peça e começou a desenrolar a chita e principiou a medir. Fiquei observando e reconheci a chita sarapintada e fui logo dizendo: "Ih! Sra. Rosa, esta chita desbota toda. Mamãe já lavou um pedacinho...". A Sra. Rosa largou o metro no balcão e disse: "Se é assim, Sr. Capitão, não levo não." E foi saindo de banda. Papai franziu a testa e limpou a garganta em sinal de reprovação e eu tratei de escapulir receando as chineladas...

 

Os Velocípedes

Joanito, Lali e Juca formavam uma trinca inseparável. Freqüentavam a mesma escola e as artes eram de sociedade. Em certa ocasião eles ganharam um velocípede. O de Joanito e Lali era vermelho e o de Juca era cor de estanho. Antes e depois das aulas os garotos apostavam corridas. Levavam cada tombo que era uma beleza! O Juca era o mais alto e o mais magro dos três e o velocípede dele era menor. Nas corridas dava gosto a gente apreciar os joelhos do Juca que às vezes iam acima da cabeça. Lali, que era menorzinho, nunca apostava carreira com receio dos tombos espetaculares. Certa vez, numa das corridas, emprestaram o velocípede a Ceceto. Este, numa correria louca, não via ninguém; olhava só para os pedais. Com isto atropelou a Chiquinha Capichaba que foi atirada longe tendo perdido os sentidos, pregando assim um susto tremendo nos meninos que recolheram a casa assustados, tremendo como vara verde.

Resultado: os velocípedes foram recolhidos e os meninos só tinham licença de brincar dentro de casa.

Iniciamos um tempo quente, pois até eu entrei na folia. Era um barulho ensurdecedor. Não sei como papai aturava. Partíamos da porta do quarto de mamãe, atravessávamos a varanda, a sala de jantar, a salinha, entrávamos na sala grande, dávamos uma volta na mesa redonda e voltávamos ao ponto de partida. E isso era todo o dia até que os velocípedes perderam as rodas.

 

Vovô e Vovó, do Engenho

Estávamos na Fazenda do Engenho em Ponte Nova. Periodicamente, mamãe, apesar de grandes sacrifícios, passava conosco uma temporada na propriedade de seus pais. Para nós, as crianças, aquilo era uma delícia! Vovó, cujo semblante denunciava a bondade que enchia a sua alma, era a sempre defensora de nossas artes. Era o nosso Anjo da Guarda.

Vovô, tipo imponente, de barbas brancas adornando o rosto, um tanto calvo, impunha um respeito que ultrapassava os limites. Este terror que existia não passava da imaginação exagerada das nossas tias. E com isto, ninguém tinha coragem de elevar a voz quando pressentia Vovô ali por perto. No entanto, ele era tão bom, tão amigo de todos nós. Da meninada, apenas eu tinha a coragem de enfrentar em prosa com o velhinho. Mamãe nos dizia: "Vai conversar com papai." e a única que se dispunha era eu. Desconfiada eu ia chegando devagarinho, assentava junto dele na escada de pedra que dava para o terreiro grande e ficava a espera que ele puxasse conversa. Vovô, todo risonho, punha-se a fazer perguntas e eu então dava trelas à língua. Contava tudo quanto existia em Santa Cruz. Falava das casas do arraial e dava relação até das árvores existentes em nosso quintal. Falava dos porcos, das galinhas e das vacas, sempre com exagero é claro, para fazer vantagem. Relatava a quantidade de fruteiras, com todos os pormenores. E Vovô com um sorriso bondoso só ia me aplaudindo.

Os tempos correram e Vovô veio a falecer repentinamente, justamente nos dias em que ia festejar suas Bodas de Ouro. Foi uma bomba! Os festejos já iniciados foram sepultados com ele. E a Fazenda do Engenho entrou em fase diferente: a liberdade pediu licença para tomar conta da Fazenda. Já não havia mais aquele rigor surgido da imaginação do pessoal.

Passados alguns anos morreu Vovó, aquela santa velhinha. E ficou assim encerrado o nosso bom tempo de criança.

 

O casamento

Lá na roça, os casamentos são sempre realizados aos sábados. As ruas ficam movimentadas com a chegada dos noivos e acompanhamento. As mais das vezes o noivo vinha a cavalo com um punhado de homens, e a noiva a pé com suas amigas. Fechava o bando um camarada carregando um baú de folha com a roupa da noiva. Lá pelos lados do Facão – sítio de um agricultor – morava uma família cujos membros só iam ao arraial no dia do batizado. Só os homens saiam de casa.

Num casebre distante da estrada, morava uma família composta de um punhado de filhas. Estas, só viam gente de longe em longe, portanto não podiam fazer idéia do que era uma cidade ou um arraial.

Mesmo lá num cantinho onde morava, Bina filha mais velha de um rendeiro, achou casamento. O rapazinho ficou caído pelo beicinho da mulata e resolveu pedi-la em casamento. O pai ao consultá-la recebeu como resposta o seguinte: "Meu pai eu quero casá com Janjão pruquê acho ele um pancadão." E foi entrando para o quarto toda envergonhada... Os dias foram correndo e o Janjão apertou ao futuro sogro para marcar o dia do casamento. O suspirado dia chegou e lá se foram os noivos em demanda do arraial. Conforme o costume, os homens iam a cavalo e as mulheres a pé. A noiva, que nunca havia saído de casa, achava aquilo uma maravilha. Poeira que não acabava mais. Ao chegar na estrada do arraial, a noiva, vendo aquele punhado de casas, a Igreja, um caminhão... parou olhando para todos os lados, pôs a mão no coração e maravilhada exclamou: "Meu Deus! Como este mundo é grande!"

 

A brecha do Lali

Lali sempre foi meu companheiro. Nossa união nas artes era daquele jeito...

Estávamos na Fazendo do Engenho em Ponte Nova onde mamãe costumava passar uma temporada em visita a seus pais. Lá as artes eram disfarçadas pois tínhamos um respeito formidável de Vovô. Se até as filhas dele, que já eram moças maduras, quando percebiam os passos arrastados de Vovô formalizavam, botavam o indicador no nariz e diziam: "Psiu, aí vem Papai." Nós todos arregalávamos os olhos e pisávamos de mansinho. Apesar de tudo isto as artes não eram abandonadas. As mais das vezes as tripulias eram feitas no interior da casa, mas o campo era por demais pequeno. De vez em quando, agente planejava uma fuga para ir a horta dar uma batida nas fruteiras ou mesmo fazer uma pescaria no rio que passava perto. Os cambucás estavam amarelinhos de botar água na boca. E as jaboticabas? Mais pretas do que carvão.

Uma vez Lali combinou comigo para fugirmos para irmos a horta. O terreiro de dentro estava fechado à chave. Por ali não era possível. Não desistindo da idéia, resolvemos a afrontar o Vovô sorrateiramente. Ficamos a espreita no corredor até que ele passou para o outro lado da varanda como era seu costume. Então, pé ante pé, íamos devagarinho até alcançar a escada que era descida com cuidado e o coração batendo apressado... Ficávamos debaixo da escada até que Vovô voltasse. Plano feito, plano executado. No momento em que Vovô voltou, mais que depressa abrimos a porteirinha e esgueiramos pelo cantinho para não sermos vistos. Tínhamos que dar um pulo pois era alta a descida. Mais que depressa pulei em primeiro lugar, porém fui infeliz pois o Lali havia pisado na minha saia e foi arrastado, batendo com a testa numa pedra de ponta e foi aquele desastre! Com a testa furada e o sangue a escorrer, Lali fez uma gritaria louca. Eu vendo tanto sangue comecei a tremer e a chorar pensando que Lali ia morrer (não sei dizer se era pena do Lali ou medo das palmadas a razão de minhas lágrimas...). Dona veio correndo, apanhou o Lali e foi levá-lo para Mamãe. Esta levou um susto tremendo e tratou de fazer o curativo. Só assim Lali deixou de gritar pois o sangue deixou de correr. E eu continuava chorando na escada de pedra sem coragem de subir com medo de Vovô. Branca levou-me quase arrastada e eu chorando sempre.

Lali ficou com uma cicatriz grande na testa como lembrete de nossa arte. E todo o mundo olhava para ele e perguntava: "Lali, que brecha é esta?"

 

Despencou da laranjeira

Quiquinha era muito corajosa para não dizer ousada. Vencia sempre as dificuldades. Uma vez ela me encontrou na horta debaixo de uma laranjeira, a fitar com olhares compridos uma bonita penca de laranjas lá na grimpa. Ela indagou logo o que eu estava fazendo ali a olhar para cima. Mostrei-lhe a penca de laranjas e ela foi logo me dizendo: "Porque você não apanhou e fica aí como boba?". Eu respondi que a penca estava muito alta e não havia vara que alcançasse. Ela olhou para cima, pensou um pouco e disse resolutamente: "Pois eu vou trepar na laranjeira e apanharei as laranjas". Sem mais discussão foi subindo cautelosamente receando os espinhos e eu, cá de baixo a olhar, admirando a coragem dela. Quando ela estava quase alcançando as laranjas foi mudar de galho. Sem reparar, pisou num galho seco, este quebrou, e ela resvalou pelo tronco até o chão.

Fiquei surpresa, tal foi o meu susto! Quiquinha caiu em pé e com os olhos arregalados, pôs as mãos no peito e disse arquejando: "Ai! Estou sem fala!" Ao ouvir aquilo desatei a rir e disse: "Que negocio é este? Você não está falando?" Ela percebeu a rata e vendo que não tinha se machucado acabou rindo tambem.

 

Vovô e Vovó do Charnecão.

Vovô era um homem cheio de manias. A sua mudança para Santa Cruz do Escalvado foi o resultado de uma demanda perdida. Achou que havia sido humilhado e não quis permanecer na Fazenda do Gandarele (???), perto de Caeté. Não deu importância aos prejuízos causados pela mudança e com a família transportou-se para a Fazenda do Charnecão em Santa Cruz.

Conforme eu disse acima ele era um indivíduo cheio de manias. Mas possuía um coração generoso sempre pronto a servir aos necessitados. A sua mania número um era receitar, visitar os doentes, aplicar ventosas etc., fazendo tudo desinteressadamente. Não cheguei a conhece-lo. Mamãe contava que ele, todas as manhãs, mandava arrear o Pangaré e, cavalgando-o, partia em direção ao arraial. Corria aquilo tudo: das Mercês ao Patrimônio visitando os doentes sem recursos. Dizem que ele era um bom charlatão e gostava do ofício... Ia de casa em casa atendendo aos doentes mas não descia do cavalo. O doente vinha até a janela, consultava e no dia seguinte Vovô levava o remédio. Uma vez, ele passando em frente a uma cafua, bateu na janela chamando pelo morador. Este veio arrastando os tamancos e gemendo. Com custo chegou a janela. Ao vê-lo Vovô indagou: "O que é que você tem, homem de Deus, que está tão amarelo?". O doente respondeu: "Ih! Sô Majó tô passano um mal danado! Tou cum febrão brabo... Vancê nem quêra sabê!". Vovô, com a bengala – sua inseparável companheira – tocou no pulso do doente. Depois disse: "De fato Você tem razão: a febre está alta! Vai deitar, rapaz. Amanhã eu trago o remédio que Você precisa". E continuou a sua romaria.

Vovó era cantora na igreja juntamente com a Titia. Ao piano executavam algumas músicas. Ela descendia de uma família importante de Juiz de Fora.

Vovó era alegre, gostava muito de festas fossem elas mundanas ou religiosas.

Com Titia – única filha no meio de 7 rapazes – tomava conta do coro pois ambas possuíam belas vozes. Por ocasião do Mês de Maria, todas as tardes lá iam elas para o arraial e só regressavam depois dos leilões. Vovô não concordava com aquilo e ficava tiririca! Vivia em turra mas Vovó não ligava. E assim corria todo o mês de Maio. Terminando o Mês de Maria, Vovô pensou que havia acabado a saracoteação. Puro engano! Apareceu logo outro pretexto: a chegada de Mamãe em visita a Belêsa (???) sua irmã. Vovó apreciava muito a prosa de Mamãe e por esta razão todas as tardes lá iam as duas para o arraial. Vovô já não estava agüentando aquilo. Uma tarde Vovó já tinha saído com Titia, quando Vovô chegou na varanda e viu pelo chão grande sujeira de cachorro. Com aquilo ficou tiririca... e começou andar agitado de um lado para outro até que avistou lá na volta do caminho Vovó e Titia que regressavam. Então Vovô carrancudo formalizou-se no topo da escada. Quando Vovó foi entrando ele apontou para a sujeira e disse: "Mês de Maria, de muita alegria! Mês de Anica, de muita titica". E foi dando as costas entrando para o escritório. Vovó, sem dúvida, riu um bocado e foi chamar uma escrava para fazer a limpeza.

 

Tio Casemiro

Eu gostava muito de fazer crivo. Aprendi este trabalho com Tininha minha tia e madrinha. Levava a almovada lá para o negócio e ficava costurando enquanto não aparecia freguês. As artes tinham uma trégua por causa da presença de papai, que ali perto fazia a escrita da casa comercial.

Uma vez, pela manha, entrou no negócio o Tio Casemiro freguês e amigo de papai. Ele foi logo bulindo no chapéu e cumprimentando: "Sio Capitão, como passa Vossa Senhoria?" Ele era metido a falar difícil e a puxar termos... Papai correspondeu a saudação e encostou a caneta, vindo para perto do balcão, aguardando as ordens do freguês. Tio Casemiro pôs-se a olhar para as prateleiras desde as de fazendas, como de armarinho e ferragens, até que a sua vista alcançou as prateleiras dos remédios. Foi quando ele se lembrou o que queria. Virou-se então para Papai e perguntou: "Sio Capitão, o Senhor não tem aí as tais Pilas Catalão de Aiê?" Papai sorriu e foi procurar o remédio solicitado. Fiquei intrigada porque nunca ouvira falar naquele remédio e curiosa cheguei perto de Papai no momento em que ele entregava a droga ao freguês e li: Pílulas Catarticas de Ayer. Tive uma vontade maluca de dar uma risada mas olhei para o Papai e ele estava tão sério que adiei a risada....

 

Na barrica de milho

Não sei como cheguei a ser professora! Fico admirada porque, desconfio que na minha geração, não houve criança tão vadia quanto eu.

Entretanto, como professora, fui enérgica e sabia ensinar (modéstia a parte).

Ao atingir a idade escolar fui matriculada na escola de D. Mariazinha, esposa do tio Augusto. Papai fazia a matrícula sem indagar da gente se aquilo era ou não de nosso agrado. Por conseguinte, gostasse ou não, tínhamos que freqüentar a escola. Arranjávamos um bauzinho de folha, botava dentro uma cartilha de ABC, a lousa, lápis e caderno para o debuxo. Devo explicar o que vem a ser debuxo porque hoje não se usa mais. A professora escrevia no caderno a lápis e nós cobríamos com tinta. Para acertar a mão, em vez de letras eram uns riscos em pé ou inclinados. seguiam-se as letras e em seguida palavras. Havia decorrido uma semana e eu já estava enjoada de escola. Já não estava tolerando minha Mestra e nem D. Chiquinha – que às vezes era professora improvisada... Era um suplício agüentar tantas horas quieta num banco, sem poder andar nem conversar. Eu levava horas arquitetando um meio de não ir a escola, de burlar a vigilância de Papai. Quase em frente a nossa casa morava D. Josefa, muito amiga de Mamãe, e nós íamos sempre em sua casa. Ganhávamos biscoitos, frutas, doces etc. Era uma beleza!

Uma tarde saí de casa parafusando um plano de falhar da escola escondida de Papai. Fui para a casa de D. Josefa e lá fiquei esquadrinhando todos os cantos procurando um esconderijo, até que encontrei num cantinho uma grande barrica com milho até a metade. Achei que ali era um ótimo esconderijo. Nasceu-me logo a idéia de executar o meu desejo de, em vez de ir a escola, esconder-me dentro da barrica. Estava planejada a arte. No dia seguinte, logo depois do almoço, troquei de roupa, tomei do bauzinho e desci as escadas. Em vez de seguir para a escola fiquei na porta observando papai. No momento em que ele foi a sobreloja troca na escrivaninha uma nota para um freguês, dei uma corrida e fui direto a casa de D. Josefa, indo direto para dentro da barrica de milho, lá ficando até ser descoberta. Pedi a D. Josefa pelo amor de Deus para não contar a ninguém que eu estava fugindo da escola. Por seguro fiquei dentro da barrica até terminar as aulas. Minha Mestra cantava um hino com as crianças ao terminar, e no final as crianças saiam numa garalhada medonha, umas para as Mercês, outras para o Patrimônio. Aproveitei a confusão da meninada e cheguei em casa com o meu bauzinho e fui logo pedindo café com biscoito pois estava com fome. Fiz isto para que pensassem que eu tinha vindo mesmo da escola. D. Josefa cumpriu o que havia me prometido, não contou a mamãe a minha arte, dando assim ensejo de diversas repetições.

 

A Descoberta

Quando eu era criança dava a vida para fazer artes. Trazia a Mamãe de "canto chorado" como ela dizia.

Com uma habilidade invulgar eu burlava a vigilância do Papai e por esta razão nunca era repreendida pois as artes nunca apareciam.

Sem cerimônia nenhuma eu percorria todas as casas do arraial. Almoçava aqui, merendava ali e jantava acolá. E ninguém desconfiava de nada.

Depois de ter almoçado em casa da Bujula, eu chegava em casa justamente na hora em que tia Porcina levava os pratos para a mesa. Mais que depressa eu descia as escadas para chamar o Papai. Na mesa eu olhava os pratos com desdém e nunca tinha apetite. Mamãe ficava nervosa e dizia: "Esta menina não está se alimentando direito, precisa tomar um tônico para abrir o apetite. Só mesmo o Vinho Reconstituinte Silva Araújo poderá fazer voltar o apetite". E eu lambia os beiços porque gostava do tal vinho. Ouvia tudo caladinha com um olhar de sem vergonha... E a arte passava despercebida.

Certa vez, numa destas peregrinações, fui à casa de Sa Luissa lá na Rua de Cima. Cheguei na hora H: as panelas fumegavam e de dentro saia um cheirinho gostoso... Sem mais aquela, entrei num bom prato de feijão, angu e couve com uma lasquinha de lingüiça oferecido pela dona da casa. Satisfeito o apetite despedi-me e fui correndo para casa, justamente na hora em que Papai cerrava as portas do negócio para ir almoçar. Na mesa, olhei tudo com uma cara enjoada como quem não queria nada. Mas, vendo na mesa uma terrina com galinha de molho pardo, meu prato predileto, não resisti. Apesar de ter o estômago cheio, fartei-me com a deliciosa galinha. Momentos após, o estômago não aceitando mais aquela carga botou tudo p’ra fora. Mamãe , toda aflita, quis verificar o que me havia feito mal e com surpresa notou vestígios de couve e angu que não havia na mesa. Foi assim que foi descoberta a minha falta de apetite. Em vez de Vinho Silva Araújo ela me deu umas sacudidelas e um bom copo de sal amargo.

 

A facada

Eu já disse que o Lali sempre foi meu companheiro nas artes, senão vejamos.

Certa vez fugimos para a horta escondidos de Mamãe e começamos a escarafunchar tudo procurando alguma coisa para incrementar as nossas artes. Achamos num monturo de lixo uma faca sem ponta e toda enferrujada. Dei um pulo e peguei na faca. Lali gritou: "É minha, quem cavou o buraco fui eu." E eu retruquei: "Não senhor, quem pegou nela primeiro fui eu." E a briga começou: eu puxo, ele puxa, eu xingo, ele xinga e Lali, sempre seguro no cabo da faca, conseguiu toma-la. Comecei então a arranjar apelido para ele: "Lali cabrito. Lali mosquito" e por aí a fora. Desesperado com os insultos, ele avançou furioso contra mim e, com toda a força, espetou-me a faca. Mesmo sem ponta e enferrujada a faca apanhou meu braço num golpe profundo. Apesar de decorridos tantos anos ainda tenho o sinal no braço direito. A pedra marcou Lali, e a faca sem ponta a mim.

 

Na goiabeira

Fui para a horta em companhia de Zinha. Rodamos a horta toda em na esperança de encontrar uma fruta para satisfazer a nossa gulodice. De repente, Zinha apontou para uma goiabeira dizendo: "Olha lá que porção de goiabas, todas inchadas." Olhei e vi "cada bitela" que dava gosto e... água na nossa boca.

Como Zinha era medrosa e não trepava em árvores, resolvi fazer o serviço sozinha. Antes, porém, fiz uma recomendação: "Vigia a porta da horta porque Papai pode vir e zangar com a gente. Ele vindo, você me avisa que eu desço depressa." Ela concordou e tratei de dar inicio ao trabalho. A goiabeira tinha o tronco grosso e era fácil de subir. Trepei na cerca e alcancei um galho bom e toco a apanhar goiabas e jogar para Zinha. E ela, toda afoita, toca a encher o colo e com isto esqueceu-se de minhas recomendações. Eu estava entretida, pelejando para alcançar uma "baita", quando percebi o limpar de garganta de papai. Quando olhei o papai estava parado a me olhar e acabou dizendo: "Desce d´ahi macho capitão." Não sei como despenquei da galha e cai na copa da mexeriqueira que havia em baixo. Eu tremia como "vara verde". Vendo que Papai tinha se retirado tratei de descer e encontrei Zinha com o colo cheio de goiabas e rindo a mais não poder. Quanto mais ela ria, mais eu xingava. Depois a coisa serenou e fomos para debaixo da jaboticabeira apreciar as deliciosas goiabas.

 

O pipote de vinho

O que já disse torno a repetir: a minha especialidade era burlar a vigilância de papai tanto fora como dentro da casa. Nem sempre aparecia a autora das artes. Vou relatar uma daquelas de se tirar o chapéu...

Certa vez, remexendo na sobreloja esbarrei com uns pipotes encarreirados num banco baixinho. Fiquei intrigada sem saber se aquilo era de cachaça, vinho ou vinagre. Não sosseguei enquanto não perguntei ao Papai. Fiquei sabendo que o primeiro era de vinho e os outros vinagre. A partir daquele dia fiquei estudando um meio de provar daquele vinho, escondida do papai, é claro. Um belo dia aventurei. Fui ao armário, retirei um copo, e desci pé ante pé a escada e fui direto a sobreloja. O Papai estava entretido lá no paiol recebendo e pesando uns sacos de café. A demora era certa e eu não podia perder tão boa oportunidade. Com o copo bem escondidinho nas dobras da saia, fui para a sobreloja. Chegando perto do pipote de vinho, abri a torneira, deixei escorrer um bocadinho do vinho só para provar. Provei e gostei. Resolvi então a beber mais um bocadinho e quanto mais bebia mais queria beber. Estava danado de bom! Depois senti a cabeça rodar e tratei de ir-me embora. Sai vacilante, encostando pela parede, até que o copo escapuliu de minha mão e espatifou-se no chão. Também eu, que já não me agüentava, caí e não consegui levantar-me. Nesta hora, Martinha, que estava rachando lenha, percebendo o barulho da queda do copo, foi ver o que era e me viu espichada no chão. Mais que depressa ela me carregou, me pôs na cama e foi chamar a Mamãe. Esta, quando chegou, encontrou-me vomitando grande porção de vinho e cambaleando. Ela zangada me deu umas sacudidelas e me pôs na cama, e lá fiquei eu cozinhando o pileque.

Quando o Papai voltou para o negócio sentiu forte cheiro de vinho e foi verificar o que havia. Eu havia deixado a torneira aberta. O chão estava todo molhado e o pipote vazio.

Não me recordo se tomei palmadas como merecia, só sei dizer e que Papai ficou muito zangado. Dormi quase o dia todo e quando acordei minha boca estava ruim e enjoada. Então fiz um protesto: nunca mais mexer em pipote de vinho!

 

Joanito e os maracujás

A turma formada por Joanito, Lali e Juca era levada da breca. Arranjava artes que era de se tirar o chapéu. Quando eles desapareciam Quiquinha ia para a sacada e botava a boca no mundo a gritar pelos garotos. Às vezes nós outras ajudávamos na gritaria. Quiquinha era levada mas não perdoava ninguém. Era danada para contar a Mamãe as artes que fazíamos. A gritaria só cessava quando os meninos apareciam. Uma vez desapareceram os cabritos e Joanito ficou maluco. Cansaram de procurar e nada de encontrar os 3 cabritos: Balão, Relógio e Peitudo ali por perto. Resolveram então a pedir licença e saíram pelo campo a gritar: "Bito, bito, bito Relógio. Cá Balão. Bito, bito, bito Peitudo". E nada. Deram uma batida no campo e resolveram a ir pelos lados do Fundão e Mutuca atras dos fujões.

Ao passar perto de uma moita deram com uma latada de maracujás madurinhos que era uma beleza. Não resistiram a tentação e fizeram a colheita. Juca era medroso, tinha medo de doença, comeu apenas um e não deixou o Lali comer mais de um. Joanito não aceitou os conselhos e comeu à beça. Quando regressaram, o sol estava tinindo e o calor estava insuportável. E como era a hora do jantar voltaram correndo. Joanito chegou queixando-se de dor de cabeça e estômago pesado e foi direto para a cama. Passou a tarde toda a gemer. Mamãe ficou nervosa e mandou Branca preparar um purgativo de sal amargo enquanto ela cuidava da Stella que era novinha. Branca trouxe a tisana mas Joanito botou tudo fora. Foi preparada outra dose e Mamãe mandou chamar Papai. Este veio e adulou o mais que pode o rapazinho e nada alcançou. O pequeno era pirracento. Papai perdendo a paciência atirou a xícara com o remédio no chão e sapecou boas palmadas no menino e foi para o negócio: Mamãe acomodou Stella e foi preparar novo purgativo. Pôs o Joanito no colo, chamou as empregadas e mandou que elas segurassem os braços e as pernas e Branca apertasse o nariz. Tudo pronto, Joanito sem poder mover-se acabou gritando: "Pode virar". E foi engolindo tudo. Só assim pode melhorar da indigestão provocada pelos maracujás.

 

Defunta Camila

Sa Maria Luisa, uma velha amiga de Mamãe, fez presente ao Lali de uma franguinha preta e arrepiada. Foi uma festa lá em casa. Todo o mundo queria carregar a franguinha. A pobrezinha não tinha o prazer de ir ciscar lá no terreiro no meio das companheiras. Andava de mão em mão. Lali resolveu dar um nome a bichinha. Depois de muito escolher acabou botando o nome de Defunta Camila. Não sei explicar a origem desse nome, só sei dizer que a idéia foi do Lali.

Teve início a odisséia da Defunta Camila. Ela andava carregada d´aquí pr´alí e passou a ser artista de circo. Joanito e Lali arranjaram uma escadinha e começaram a ensinar a franguinha a subir e descer como fazia a artista de um circo que eles assistiram. Era cada trambolhão que dava gosto! Tantas cenas fizeram, tantas mágicas, que a pobrezinha acabou morrendo. Lali fez um berreiro medonho pois não queria que a Defunta Camila morresse. Depois de muita choradeira resolveu enterrá-la pomposamente. Houve acompanhamento e até Banda de Música dos meninos.

E foi assim que desapareceu a Defunta Camila do Lali.

 

Quiquinha e as cantoras

Minhas irmãs começaram a aprender música com o tio Alexandre irmão de Papai. Este, porém, não chegou a ensinar quase nada porque adoeceu e morreu logo.

Tempos depois o nosso Vigário sabendo que elas tinham boas vozes, convenceu a Papai que ele devia mandar chamar em Ponte Nova o Sio João Raxa para continuar a ensiná-las. Com a aquiescência do Papai ele se encarregou da vinda do Maestro, combinou com ele o necessário e as lições principiaram. As meninas estudaram a Artinha toda, começaram a solfejar e por fim estudaram cânticos religiosos.

Numa festa do Sagrado Coração de Jesus elas estrearam no coro. Fizeram sucesso! João Raxa no violino, Zinha no harmônio Branca e Quiquinha cantavam, e eu... escutava... Cada vez mais entusiasmadas elas continuaram estudando. Aos domingos cantavam durante a Missa. Sio Vigário vivia entusiasmado!

O coro antigo dirigido por Zé Teodoro era composto das cantoras: Sa Severina, Sa Cute, Anastácia, Sio João Paulo e mais outras que não me recordo. Este coro não foi posto de lado e estava sempre a postos para o que desse e viesse.

Num mês de Maria as cantoras ensaiaram um canto que minhas irmãs haviam estudado. Quiquinha, com o pensar de criança, entendeu que elas não podiam cantar aquele cântico que era só dela, e planejou uma arte. Ficou caladinha porque se Mamãe soubesse não consentiria. Num domingo a Igreja estava lotada. Papai e Mamãe lá estavam conosco. A cerimônia começou. O Vigário foi para o altar. As virgens ao som de uma música adequada levaram a coroa e entregaram ao Sacerdote. Sio Zé Lopes balançava o turíbulo e os ajudantes tocavam as campainhas. O povo apreciava tudo silenciosamente. E a reza prosseguia. Em dado momento os músicos começaram a tocar a introdução de um Hino a Nossa Senhora – o tal que a Quiquinha havia estudado. Sa Cute batia compasso e com as outras cantava fanhosamente. Quiquinha não resistiu. Quando o coro fez uma pausa, Quiquinha, do meio do povo, principiou a cantar o mesmo canto com voz forte. Os músicos pararam e Quiquinha foi até o fim, não ligando as sacudidelas da Mamãe. O Vigário ficou suspenso encantado com aquela surpresa. O povo não se mexia; tudo em silencio encantado com aquela vozinha tão bonita e tão firme! Quando terminou o cântico, Quiquinha começou a tremer, não sei se de comoção ou medo de papai. Teve que sair da Igreja. Na porta encontrou-se com o Sio Tedolino que a levou até a nossa casa. Ela foi direitinho para a cama fugindo dos pitos de Papai.

 

A goiabada

Quando chegava a época de fazer goiabada, era um reboliço lá em casa. Despachava-se cedinho os apanhadores de goiabas com os cargueiros e balaios. Era requisitado o serviço de Manoela – minha saudosa babá – para preparar o vasilhame, os taboleiros para por as goiabas, lenha rachada aos montes, tachos areiados e o terreiro varridinho. Era uma festa a chegada dos cargueiros e a meninada queria ver despejar as goiabas nos taboleiros. As mais gulosas – a principiar por mim – ficavam ativas a espreita das melhores goiabas inchadas e sem bicho. Mamãe logo o serviço: limpava e partia as goiabas e jogava nas gamelas e nós íamos retirando as sementes. Depois de lavadas, as goiabas eram postas no tacho para cozinhar e em seguida eram passadas na peneira, e daí por diante. Era uma atividade que fazia gosto. As ajudantes tanto trabalhavam como saboreavam o miolo mais durinho e sem bicho.

Já era hora do jantar e a cozinheira veio chamar Mamãe para arranjar os pratos. Mamãe tinha o hábito de arranjar as comidas no prato, arranjando tudo direitinho, para depois chamar o Papai. Nicota e Stella haviam ficado sozinhas no quarto mexendo com as goiabas. A certa altura as duas começaram a discutir por causa da faca da Mamãe. Uma gritava: "Eu quero a faca", e a outra respondia: "Não dou pois quem pegou nela primeiro fui eu.". E a briga começou com trocas de xingamentos. Afinal, Nicota deu um soco em Stella e correu. Esta, não tendo tempo de retribuir, o que fez? Atirou a faca com toda a força, indo esta cravar na testa de Nicota bem perto da fronte. Foi uma gritaria medonha. Tanto gritava Nicota quanto Stella. Branca veio correndo, arrancou a faca. Nicota começou a gritar mais ainda: "É no lugar que mata!". Quanto mais ela gritava mais Stella tremia e soluçava, pensando mesmo que Nicota ia morrer. Custou a convencer que o golpe não era mortal. E foi este o remate do primeiro dia de goiabada.

 

Complete o talher

Casa que tem muita criança tem também muita arte. Quando a meninada não está brigando, está pintando o sete. Lá em casa era assim, muita gente, muita barulhada e muita arte. Com exceção de Branca que era mais acomodada, o resto era um Deus nos acuda! Vou relatar o que sucedeu certa vez a hora do jantar. Papai ficava na cabeceira da mesa e nós ao redor. Apesar da sisudez de Papai – que era homem de pouca conversa – a tagarelice imperava entre a meninada. Mamãe era surda portanto não percebia o que se passava ao redor. E de mais a mais ela era muito condescendente com os filhos. Pois bem; no meio da tagarelice Lali buliu com Stella dando-lhe um apelido qualquer. Ela não aturava desaforo e apanhou logo um garfo e atirou com raiva e o garfo ficou espetado no braço de Lali que logo começou a chorar. Papai franziu a testa e todo sério pegou numa colher e passou para Stella dizendo: "Jogue isto também, complete o talher", fazendo alusão a faca que ela tinha atirado em Nicota. E Mamãe foi curar o braço de Lali.

 

Na Fazenda do Engenho

Com a morte de meus avós a Fazenda do Engenho não podia ficar ao Deus dará. Precisava de alguém que assumisse o governo da mesma. Foi quando o tio Caetano abandonou a clínica em S. Domingos do Prata e tornou-se fazendeiro. O sistema da fazenda foi todo modificado e o pessoal agia com mais liberdade. De vez em quando, juntamente com Mamãe, lá vamos nós numa cavalhada desenfreada íamos tomar o Trem de Ferro em Rio Doce. Chegando em Ponte Nova rumávamos para a Fazenda numa alegria louca e lá passávamos dias inolvidáveis.

Numa das vezes em que estávamos por lá, minhas irmãs, já moças, gostavam de ficar à noite reunidas na varandinha e a folia era certa. Cantavam modinhas, recitavam poesias, brincavam de prendas, contavam histórias, numa folia louca! Quanta saudade daqueles bons tempos!

Certa vez estavam reunidas na varandinha e, apesar de mais criança, meti-me no meio delas para tomar parte na brincadeira. Era já noite escura, e naquela época não havia ainda luz elétrica. Todavia a escuridão não tirava o entusiasmo da turma. Mesmo sem acompanhamento, entoava-se modinhas – algumas melosas, outras mais alegres, cantava-se duetos, lundus, etc. E o tempo corria alegremente. Em uma das noites, resolvi tomar parte na farra mesmo sem jeito como era o meu feitio. Uma de minhas irmãs propôs que eu recitasse uma poesia. Não me fiz de rogada, e, desajeitadamente, comecei:

"Não sei porque nasci!
Esta existência inglória,
Que arrasto a gemer
Por entre a multidão,
Não vale uma hora só.
Um só momento,
De uma estrela a brilhar
No azul do firmamento,
Na vasta limpidez
Das noites de verão!"
E concluí assim:
"Tenho tédio de mim
E de tudo que me cerca
Dos sonhos que sonhei,
Dos versos que escrevi
Não gosto dos rumores
Faustosos da cidade
Tenho horror a ciência
Odeio a humanidade!
Não sei porque nasci!"

Pegando na deixa, tio Caetano que estava espichado num banco lá num canto da varanda, interrompeu dizendo:

"Para comer e dormir."

A gargalhada foi geral e eu, encabulada, meti a viola no saco!

 

Casamento na roça

Lá na minha terra era costume quando havia algum casamento do pessoal da roça, organizavam uma cavalhada de homens e mulheres acompanhantes dos noivos. Entravam no arraial numa galopeira louca e a poeira cobria toda a rua. Cada qual queria fazer bonito. Os noivos iam na frente puxando a fieira e atrás vinham os homens e senhoras. Era divertido... Certa vez eu estava debruçada na sacada apreciando o movimento. Cada qual queria fazer bonito para chamar a atenção. Começaram a apeiar dos cavalos numa casa perto da nossa. Foi quando uma mulata dengosa, para fazer bonito e chamar a atenção deu uma chicotada na cara do cavalo antes de apeiar. O cavalo assustou-se, deu um pulo, empinou e deu com a cavaleira no chão. Esta levantou-se, com um riso amarelado, deu uma chicotada no cavalo dizendo: "Êta cavalo marchadô e caidô!". E foi entrando e sacudindo a poeira da montaria.

 

Mingau...

Na Fazenda de meus avós em Ponte Nova, desde os tempos da escravatura havia sempre um homem encarregado da administração do serviço. Feitorava tudo e era sempre o escolhido para os mandados do Patrão.

Do tempo da escravatura nada me recordo pois eu ainda não era gente observadora quando se deu a Abolição,

Quando o Tio Caetano assumiu o governo da fazenda após a morte de Vovô, havia já na casa um feitor de nome Honório. Ele era casado com Cidina e tinha sua residência mesmo no terreiro da Fazenda. Sio Honório era "pau prá toda obra". Sabia agradar as crianças e era muito acatado pelos maiorais. Sendo "Persona grata" andava por toda a parte, sempre solicito.

Certo dia Sio Honório adoeceu. Veio o médico, examinou-o e achou que o caso era complicado. Era uma moléstia rebelde e aos poucos Sio Honório ia definhando. Em toda parte, nestas circunstâncias, há sempre alguém que ajuda a cuidar do doente, dando remédios, banhos etc. Falam em confissões e prontificam em chamar o Padre.

Sio Honório ia piorando sempre, arquejava muito, mas ainda não tinha perdido o apetite. Como os presentes notaram que a morte andava rondando, um dos assistentes prevendo o próximo fim, foi para perto do doente e rezando falou-lhe aos ouvidos: "Honório, diga Jesus!" e ele replicou logo com voz ainda forte: "Não digo". Cidina estremeceu e foi para perto e passando-lhe de leve a mão pelo rosto, disse: "Meu bem, diga Jesus" e ele, numa voz ainda forte, olhando para ela disse: "Mingau". E começou a arquejar nas ancias da morte. Cidina em soluços prevendo o fim, repetiu a frase quase soluçando: "Honório, meu bem, diga Jesus!" E o doente a expirar murmurou com voz entrecortada: "Min-ga-u" e expirou.

 

No radio.

Fui a Ouro Preto visitar a minha amiga Matilde Baêta da Costa que era, como eu, radioamadora. Seus Pais ainda eram vivos, por conseguinte a alegria imperava em sua casa. Foi um passeio que proporcionou-me horas agradáveis das quais guardo saudosa recordação. Como radioamadora, Matilde fez conhecimento com meio mundo e era incansável em prestar favores. Passava grande parte do tempo em rádio e tinha assunto para todo o mundo...

Numa das noites em que lá passei, Matilde ligou o transmissor e passou-me o microfone, para eu fazer um chamadito. Prontamente pus-me a gritar: "PY4IP chama geral do chaque de PY4LQ" e por aí a fora. Desligava o transmissor, corria a faixa, e nem uma resposta. Teimosamente eu continuava a chamar e o silencio continuava imperando... De uma feita eu termeinei o chamado da seguinte forma: "Eu sou capaz de mandar um beijo para quem responder ao meu chamado". Desliguei na certeza de que ninguém responderia. Mas a resposta veio logo: PY4AG está respondendo o seu chamado. Era o saudoso Cônego Trindade que sem dúvida queria apreciar o meu embaraço.

Voltando para ele, veio-me na hora H uma boa resposta. Ei-la: "PY4IP volta para PY4AG única contestação ouvida". Depois dos agradecimentos de estilo eu disse: "Cônego Trindade, conforme prometi, beijo respeitosamente as mãos de Vossa Reverendíssima". A minha saída provocou riso. E encerramos a brincadeira. Recordando este QSO, sinto imensa saudade dos bons tempos de radio.

 

Profanação.

Lá na minha terra, num Domingo a hora da Missa, ao Evangelho, o Vigário, todo embaraçado, com voz tremula avisou a assistência que durante a noite anterior, um malfeitor havia entrado na Igreja e violado o Sacrário, retirando deste o relicário onde estava a sagrada Hóstia. Mal acabou de dar o aviso, houve um zum-zum nos corredores e um punhado de homens saiu alvoroçado da Igreja. O Vigário havia dito que era necessário procurar o malfeitor para recuperar o relicário roubado.

Ao sair da Igreja o grupo combinou dar uma batida pelos matos em busca do sacrílego. Antes porem sondaram e ficaram sabendo que havia surgido lá no Lôbo um sujeito que levava consigo uma caixinha dourada tendo dentro uma rodelinha branca parecendo Hóstia. Com este conhecimento, foram todos pela estrada do Lôbo a procura do malfeitor. Num casebre à beira da estrada foi encontrado o homem que começou a tremer quando viu tanta gente. Respondendo as perguntas que lhe fizeram confessou ser ele o autor do roubo e pediu pelo amor de Deus que não lhe tirassem a vida. Perguntaram onde estava a caixinha dourada e ele disse que estava escondida no mato. Com todo o jeito convenceram-no a ir mostrar o lugar onde estava a Hóstia. Ele foi todo trêmulo, penetrou num matagal, e depois de ter andando um pouco, parou e disse: "É aqui". O pessoal com todo o respeito retirou o mato que cobria o lugar e encontraram o relicário contendo a Sagrada Partícula. Com o máximo respeito, o escrivão – homem probo – colocou o relicário em cima de uma toalha que ele havia levada com precaução, retirou do bolso uma vela, acendeu-a, montou a cavalo, e com a turma rumou para o arraial. O criminoso foi com os braços amarrados e com o chapéu na cabeça para ser identificado. O trajeto foi feito vagarosamente, aumentando o número pelos moradores das casas onde passava a procissão. Rezavam e cantavam hinos sacros com fervor e respeito. Na entrada do arraial, os negociantes cerraram as portas e seguiam com o povo que era aumentado pelos moradores do lugar. Os sinos repicaram até a entrada do Santíssimo na Matriz. O Vigário estava paramentado e recebeu do Escrivão o relicário, o qual foi depositado no Altar. Após ligeiras e emocionantes palavras o Vigário deu a Benção com o S.S.Sacramento. logo após convidou o povo para fazer uma Novena de Desagravo. Enquanto isto, o povo fervilhava na rua querendo linchar o infeliz. Foi preciso que um dos circunstantes abraçasse o criminoso e assim ele foi levado para a Sapucaia (prisão).

No dia imediato ele foi levado para a Cadeia de Ponte Nova onde esteve até serenar os ânimos. Foi posto em liberdade porque ficou provado ser ele um irresponsável – um tarado.

A impressão deste fato perdurou por muito tempo. Receava-mos que a nossa Matriz ficasse interditada como sempre acontece em casos semelhantes. Mas as circunstâncias relevaram a falta.

 

Passeio magnífico.

Em janeiro de 1913 demos um passeio magnífico! Mamãe havia prometido a Mariana, esposa de Astolfo Batista, ir com a turma passar uns dias com ela na Saúde. Com a promessa feita, o jeito era ir mesmo, pois recebíamos recados uns sobre outros reclamando a nossa ida.

Em princípio de janeiro, como o dia estava propício para viajar pois a chuva deu estiada, arrumamos tudo para irmos tomar o Trem em Rio Doce. Um grupo foi a cavalo e outro em carro de bois. Éramos 6 pessoas no carro. Na comitiva não havia homens. De Santa Cruz a Rio Doce a viagem foi péssima devido estar a estrada cheia de lama devido as chuvas caídas nos dias anteriores. Gastamos 5 horas no trajeto. Em Rio Doce tomamos o Trem depois de pequena parada na casa do nosso bom amigo Sr. João Paulo. Pela Estrada de Ferro a viagem foi ótima, alegrada com a folia da turma. Encontramos na Estação de Saúde os nossos amigos: Alvaro, Astolfo e filhas. Fomos recebidas com demonstração de alegria. Só faltou Banda de Música e foguetório... Foram magníficos os dias em Saúde – hoje D. Silvério – e deixaram muitas saudades. Reviramos o arraial de ponta a ponta e ficamos conhecendo muita gente. Assistimos uma festa Religiosa; fomos ao Cinema. Fomos também a um teatro de amadores onde levaram dramas e comédias. Os atores não eram maus e estavam bem ensaiados. Nossa turma era grande, teve de partir ficando uns em casa do Alvaro e outros em casa do Astolfo. Em ambas as casas a folia era grande. Ao anoitecer a rapaziada surgia com violões ora em uma casa, ora noutra. A orquestra era boa. Cantávamos modinhas, recitávamos, dançávamos e ... pintávamos o sete até tarde da noite.

Foi com sincera saudade que nos despedimos de gente tão boa! No Trem pintamos e rabiscamos até chegar em Rio Doce onde encontramos o necessário para chegar em casa – carro de bois e cavalos. Paramos pouco em Rio Doce, tomamos as conduções e rumamos para Santa Cruz. A viagem de regresso foi melhor porque não havia tanta lama. Tendo decorrido uns dias deliberei a escrever uma carta ao Alvaro e foi carta rimada, a qual transcrevo:

Alvaro Batista
Prezado amigo, eu vou dar-te
Noticia minuciosa
Desde o momento tristonho
Da partida dolorosa.
Em versos faço esta carta
Eu quero escrever em rima
Se são bem feitos - não sei.
Não sei se são: "Obra prima"
De manhã partimos todas
Em demanda da Estação
Tendo um sorriso nos lábios
E a mágoa no coração.
Conosco foi muita gente,
Até mesmo namorados...
Ficamos todas confusas
Com tanto zelo e cuidados.
Quando o feioso do Agente
Pegou na corda e fez: dém!
Muita gente quis chorar...
Até eu, chorei também.
Nicota, a pobre coitada,
Ficou num canto em silêncio
Curtindo grande saudade
Do teu vizinho, o Fulgencio.
A Zinha, veio cantando
Com um ar todo matreiro
Uma valsa maviosa
Dos tais Jovinos Cordeiro.
Stella, que tem suas partes
De muita moça bonita...
Veio jurú lá num canto
Desenrolando sua fita.
Nos fez perder a paciência
Perdi quase a estribeira
Nunca vi berreiro assim!
Nunca vi tanta zueira!
Prá não chorar eu chupava
Umas mangas saborosas
Que iam cortando aos poucos
As saudades dolorosas!
O resto... eu não conto não.
Talvez fique p´r´outra vez.
Escreverei com vagar
Em princípios de outro mês.
Se te amolei com meus versos
Peço perdão, meu amigo.
Quero ser breve – não posso!
Falar pouco... Não consigo.
Envio boa remessa
De saudade – em sacos novos
Para ser distribuída
Entre as povas e os povos
Adeus! Eu vou terminar
Não julgues que seja pêta
Recebe muita saudade
Da amoladora
Georgêta.

 

Carnaval - Contrato de casamento

Como radioamadora conquistei na faixa muitas amizades. Algumas conservo até hoje, Deus louvado! Conservo na memória alguns comunicados dos quais guardo saudosas recordações.

De um deles vou relatar embora palidamente. Certa noite eu estava em comunicado com Alvaro Caetano (PY4IW). No decorrer da prosa ele perguntou-me se eu havia falado com PY4JG lá de Uberaba. Com a minha resposta negativa, ele me disse que valia a pena eu tentar, pois tratava-se de um rapazinho 100%. Então ele combinou comigo um comunicado para o dia seguinte. De acordo com o combinado, no horário aprazado, lá estava eu na "coruja" aguardando o chamado de PY4IW. E foi em companhia do Alvaro que entrei em contato com o rapazinho que de fato era 100%. Sua prosa era insinuante, assim como o seu modo de rir e brincar. E foi assim que granjeei na faixa mais uma amizade. E nossos comunicados passaram a ser diários. Por ocasião do Carnaval arranjamos uma brincadeira interessante: PY4JG tornou-se meu namorado e em seguida ficamos noivos. E as declarações de amor andavam de parte a parte durante os 3 dias de Carnaval. Parecia mesmo que Cupido estava arranjando um negócio muito sério. No último dia de Carnaval entramos em comunicado com o entusiasmo costumeiro pois era o último dia e o Carnaval ia deixar saudades! Antes de terminar o comunicado, resolvi desmanchar o noivado. PY4JG ficou surpreso e zangado. Em vista de minha atitude ele pediu-me que lhe devolvesse o anel de noivado que ele havia me dado. Respondi-lhe: "A palavra devolvo, mas, a aliança vai fazer parte da minha coleção, ficando também como recordação do nosso noivado". Ele protestou, implorou, xingou, mas eu fiquei irredutível. E assim terminou a nossa brincadeira de Carnaval. PY4JG é hoje PY1PA e é marido da minha sobrinha apelidada por ele de Canarinho nos nossos comunicados. Confesso que esse comunicado me deixou saudades...

 

Otilia

Foi no ano de 1898 que entrei para o Colégio de Nossa Senhora Auxiliadora em Ponte Nova. Papai, já cansado de minhas artes, depois de uma briga que tive com Joanito, tomou uma séria resolução, mandando que a Mamãe preparasse meu enxoval para eu ir para o Colégio porque eu estava insuportável e era necessário meu internamento. A palavra internamento soou mal em meus ouvidos. O que viria a ser aquilo? Fiquei apavorada ruminando aquela ordem severa e o significado da palavra. Aos poucos fui me acostumando e acabei esquecendo do internamento e já estava aflita que chegasse o dia de partida, pois para mim seria uma grande novidade. Fui para o Colégio. Mamãe ficou chorando quando me abraçou, mas, eu tentei chorar e ... cadê lagrima?

Ansiosa pela novidade, eu queria rir e não chorar... E lá fui eu para o Colégio, saindo de casa pela madrugada cavalgando o célebre cavalo baio em demanda do Trem de Ferro na Estação do Rio Doce. Tudo era novidade para mim!

Chegando em Ponte Nova fui diretamente para a Fazenda do Engenho e no dia imediato rumei para Palmeiras onde divisei o casarão que ia me acolher. Disseram-me que ali fora uma fazenda do Coronel Soares. Este, ficando viúvo, não quis mais saber de fazenda e tratou de vendê-la para cuidar de outros negócios.

Entrei na portaria do Colégio toda desconfiada, tendo sido recebida por D. Zéca. Fomos introduzidos no locutório, vindo em seguida a Diretora I. Maria Coussirat que conversou com Papai, tendo este apresentado os documentos exigidos pelos Estatutos. Depois fez o pagamento e tratou de retirar-se, abraçando-me e fazendo algumas recomendações. Em seguida D. Zéca conduziu-me para o recreio onde as meninas brincavam de "chicotinho queimado", assistidas por uma Irmã. As alunas pararam com o brinquedo, rodearam-me, fazendo-me perguntas, cada qual falando mais, até que conseguiram desembuxar-me. Entrei nas conversas e em pouco tempo era senhora da situação.

Decorridos alguns dias, estava-mos fazendo recreio em frente ao prédio andando para lá e para cá, ouvindo a prosa da I. Assistente. Depois fizemos roda e começamos a cantar: ‘Ca nas Palmeira", e cada qual gritava mais. E eu comecei a entoar também... No fogo do entusiasmo, vimos entrar pelo portão da frente uma família composta do casal, uma mocinha e uma criança acompanhada da Babá. As meninas mais antigas no Colégio começaram a gritar: "Otilia, Otilia", e a mocinha veio correndo abraçando a Irmã e as colegas. Nós, as novatas, ficamos na rabadeira, mas Otilia não se fez de rogada, nos abraçando e puxando conversa com uma e com outra e foi granjeando simpatia das novatas. Entrona como sempre, fui cumprimentar o Sr. Manoel Egidio e D. Bela. E fui puxando conversa até que ouvi o sinal da sineta. Despedi-me e fui correndo para a fila, contente com o conhecimento adquirido. Seja dito de passagem: Simpatizei-me muito com o casal. E lá se foi mais um dia de Colégio,

Simpatizei-me tanto com Otilia, que acabei tornando-me sua amiga e fã fervorosa. E quando Sr. Manoel Egidio voltou para Caratinga, já sabia que Otilia tinha conquistado mais uma amiga.

E os dias foram correndo e a amizade foi crescendo, crescendo... criando raízes tão profundas que o tempo não conseguiu destruir, embora já tenha decorrido 66 anos e morarmos distantes uma da outra.

Isto é brincadeira? Não! É amizade que nos acompanhará enquanto vivermos.


Ainda no Colégio

Nossa história não podia ficar só num capítulo, vai mais longe, embora reduzida. Eu era maluca pelo Colégio porém detestava estudar. Que bom seria se aquela prisão fosse só de brincadeira! Nada de estudos. Seria muito mais interessante! Mas, era preciso estudar, que fazer? Não posso explicar a razão da minha amizade com Otilia. Éramos da mesma idade mas os gênios eram diferentes. Ela – bem comportada, eu – insuportável. Como podia ser isto? Otilia era estudiosa, talentosa, bem comportada, tanto que fazia parte do capitulo da Pia União. A sua folha corrida era uma beleza! Eu? Pobre de mim! Vagabunda toda vida. Só estudava meios de dar trabalho as Irmãs. Apesar disto tudo eu tinha um it que prendia a mocinha. Ela cansava de aconselhar-me mas, era mesmo que pregar no deserto. Otilia, boníssima como era, tinha um grande defeito: era ciumenta. Vou relatar uma cena provando que não estou mentindo. Arquitetei uma arte, e esta Otilia devia ignorar senão ela iria atrapalhar-me. Procurei então outra companheira, esta bem mais moça do que eu: Nitinha do Grão. A hora do recreio agarrava-me a ela e olhava a Otilia só de longe. Era arte e mais arte e os pitos das Irmãs não cessavam. De comportamento nunca tirei a nota 10. Certa vez arranjamos uma latinha vazia e tratamos de escondê-la numa greta esperando a hora da arte, Numa tarde, burlando a vigilância das Irmãs, fugimos e fomos parar na horta – lugar proibido para nós. Por lá ficamos algum tempo. Passando por perto de um rego d’água, notamos uma quantidade enorme de sapinhos. Como eram interessantes aquelas bolinhas pretas com rabinho, nadando de um lado para o outro! Surgiu-me então uma ideia: criação de sapinhos. Mandei Nitinha buscar a lata e comecei a pegar os sapinhos. Êta bichinhos espertos! Foi um custo apanhar uma dúzia no meio de centenas deles. Nitinha trouxe a vasilha e eu disse para ela: "vamos fazer uma bela criação de sapos". Joguei dentro da lata os bichinhos que já estavam com saudades da água e rumamos para o recreio, pois já estava na hora da sineta dar o sinal. Corremos no refeitório, arranjamos umas migalhas de pão, jogamos dentro da latnha e ela ficou guardada num cantinho bem escondidinha. Era nossa delícia no recreio brincar com os bichinhos! A arte foi descoberta, deram consumo nos sapinhos e... naquela semana houve grande baixa nos nossos pontos. Otilia ficava de longe observando o progresso do meu agarramento com Nitinha. Ficou com tanto ciúme que me mandou a prova escrita num santinho que tenho guardado com muito carinho. Disse que eu estava desprezando as amizades velhas por amizades novas, etc. Coitada! Morria de ciúmes! Cansada de fazer pirraça, resolvi fazer as pazes, embora não tivesse havido briga entre nós... E a nossa amizade continuou firme até sairmos do Colégio e nos acompanhará até ao fim da nossa vida.

XXX  Fim da Parte I  XXX