Cônego Trindade

Quem sou eu para traçar a biografia de Cônego Raimundo Otavio Trindade? Todavia direi qualquer coisa sobre sua personalidade, como simples homenagem.

Cônego Trindade, falecido há poucos meses, era uma criatura boníssima, de uma inteligência invulgar, estudioso, deixando um traço luminoso onde quer que estivesse. Era natural de Barra Longa, porem viveu grande parte de sua vida em Rio Doce onde residiam seus pais .

Estudou no Seminário de Mariana onde se ordenou após um curso brilhante. Foi por uns tempos vigário de sua terra natal e também de Rio Doce, onde viveu parte de sua vida.

Cônego Trindade era muito alegre e espirituoso. Gostava muito de contar anedotas. Certa vez, estando em nossa casa por ocasião da 1ª Festa de Corpus Christi promovida pelas zeladoras do S.S. Sacramento, contou-nos um episódio, à guisa de anedota, acontecido quando ele era Vigário em Rio Doce. O caso aconteceu em uma das Capelas de sua freguesia, ele havia preparado um grupo de crianças para a Primeira Comunhão. No dia aprazado, lá estava ele na Capelinha para atender aos paroquianos. Antes de iniciar o Santo Sacrifício da Missa, tratou de arranjar a fila das crianças para evitar atropelos a hora da Comunhão. Em seguida paramentou-se, dirigiu-se para o altar e deu início a celebração da Missa. Ao Evangelho fez uma bela prática em torno do ato que se celebrava. Prosseguindo, chegou o momento de distribuir a Comunhão a petizada. O povo cantava fanhosamente, sem compasso e desentoado. Ao aproximar-se na ala dos menores, um garotinho fez sinal para ele e disse que não podia comungar porque havia se esquecido de um pecado. Cônego Trindade avaliando a espécie de pecado disse para o menino: "Pode falar aqui mesmo que eu dou a absolvição". Então o garoto todo tremulo falou: "Eu mandei Papai sombrá Zidoro". Cônego Trindade custou a conter o riso e disse para o menino: "está perdoado, pode comungar". E prosseguiu na distribuição das Sagradas Partículas.

Mais tarde Cônego Trindade foi chamado a Mariana por D. Helvécio, dando-lhe um ofício na Cúria. Ele fazia parte do Cabido da Sé. Anos depois ele foi nomeado diretor do Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Lá trabalhou muitos anos até aposentar-se. Voltou de novo para Mariana. Adoeceu gravemente e teve que ir para Belo Horizonte para entrar em tratamento. Não resistiu a moléstia vindo a falecer.

Seus despojos foram transladados para Mariana, sendo enterrado no Cemitério de Sant’Ana.

Deixou diversas obras destacando-se entre outras: História Eclesiástica da Arquidiocese de Mariana.


Os três alunos do G. Escolar

Maria, José e Lino cursavam as aulas do Grupo Escolar Dr. Otavio Soares de Santa Cruz do Escalvado.

Eram alunos bem comportados, conquistando assim a amizade de suas professoras, especialmente de sua Diretora. Em certa ocasião a família das três crianças resolveu mudar-se para a cidade de Caeté. Foi com pesar que a Diretora forneceu a guia de transferência, pois tratava-se de alunos assíduos e bem comportados. Na véspera da partida para Caeté, Maria, José e Lino surgiram no Grupo, conduzindo cada um um balainho com uma planta e ofereceram a Diretora como lembrança. Esta, comovidadmente, abraçou as crianças agradecendo tão significativo presente. Eram mudas de jaboticaba, laranja e goiaba. As mudas foram plantadas com todo o carinho. Nenhuma morreu.

Quando a Diretora mudou-se de Santa Cruz, sentiu não poder levar consigo a lembrança de seus amiguinhos. A Diretora ainda teve o prazer de saborear as goiabas deliciosas,

 

Café e carocinhos de açúcar

Da. Simpliciana Nobre era uma mulher toda esquisita, cheia de cacoetes interessantes. Era incapaz de pronunciar três palavras sem dizer: "sim Senhora". Não sabia falar a meia voz, era tudo gritado. Ela era muito amiga de Mamãe e sempre que ia ao arraial dava uma chegadinha lá em casa. Certa vez ela convidou a Mamãe para ir conosco lá em seu sítio, que ela mandaria um carro de bois para nos buscar. No dia combinado chegou o carro e lá fomos nós para Lage, numa algazarra daquelas! De fato, um passeio na roça era novidade e, para nós crianças, era uma delícia! Lá chegando espalhamos pelo terreiro que estava varridinho que dava gosto. Andamos pelo quintal, por toda a banda a cata de novidades. A velha não cabia em si de contente procurando agradar a todos. A certa hora, deixando a Mamãe na sala, foi coar um cafezinho. As tigelas estavam enfileiradas , limpinhas que dava gosto. A meninada veio correndo esperando encontrar um biscoito para satisfazer a gulodice. Qual não foi a nossa surpresa deparando em baixo do coador um urinol. A meninada começou a rir baixinho tapando a boca para disfarçar e ninguém quis café. Mamãe, coitada, passou um aperto danado sem poder dizer nada. A velha vendo que ninguém queria café perguntou: "quem sabe vocês uns carocinhos de açúcar?". Todo mundo mais que depressa : "queremos sim Senhora". Ela foi pressurosa na dispensa buscar e veio com outro pinico cheio de açúcar. Foi uma debandada geral e a Mamãe ficou numa sinuca braba sem poder dizer nada. Siá Simpliciana então percebeu a causa da recusa e disse: "Os pinicos são novinhos em folha. Comprei ontem mesmo por causa das tampas, pois a gente pode guardar as cousas sem perigo de entrar baratas". E ficou toda sem graça.

Mamãe tratou de abreviar a volta e a meninada se contentou com as canas que a velha mandou cortar.

De novo entramos no carro e no caminho houve comentário sobre o café e os carocinhos de açúcar. Em casa Mamãe passou-nos uma sarabanda em regra com a ameaça de não sair mais conosco a passeio.

 

Invejável

Lá na minha terra os nomes das Fazendas e Sítios eram interessantes. Senão, vejamos: Charnecão – Taboão – Fundão – Pintos – Cótas – Facão – Pedra e Pedras – S. João – Gambá – Sertão – S. Tomé – Larangeiras – Lôbo – Serra – Mato Dentro – Quilombo – Forquilha e por aí afora. Fazendeiros mesmo eram poucos, os mais eram sitiantes. Dizem que os Sítios davam mais renda na arrecadação de impostos. Sei lá! Não entendo disto...

Vamos ao que no momento ocupa a minha imaginação.

Lá pelos lados do distrito de Viçoso existe um belo e próspero Sítio denominado Serra, de propriedade do Sr. José Vieira de Souza. Esta propriedade pertencia ao Sr. Joaquim Eulalio de Souza, já falecido, mais conhecido como Sio Laia. Este Senhor era sogro do Sr. José Vieira, casado com Maria Domingas, filha única de Laia. Com a morte do sogro, o sítio passou a pertencer ao Juca do Laia. A família do Juca era composta de 9 filhos: 5 homens e 4 moças. Tendo o Juca do Laia tido uma instrução bastante precária por falta de bom professor, não descuidou da educação dos filhos. As filhas foram para a Escola Normal N. S. Auxiliadora em Palmeiras, e os filhos foram fazer preparatórios em Ouro Preto. Três deles formaram-se em Farmácia, um em Odontologia e outro em Medicina. As filhas fizeram o curso normal e são hoje professoras. A mais velha entrou para a Congregação Salesiana e hoje é diretora em uma casa em Uberaba. O médico, quando fazia os preparatórios, ficou num internato trabalhando como servente para auxiliar o pai. Depois ingressou na Escola de Medicina de Niterói e hoje clinica em Ponte Nova sendo chefe do SANDÚ. O dentista, certa vez recebendo em Ouro Preto a visita do pai, comunicou-lhe que não queria prosseguir nos estudos. Juca do Laia não discutiu, apenas disse: "Já que você não quer estudar, vamos para a roça. Passando em Ponte Nova você vai escolher num negócio uma boa enxada, pois é isto que você espera lá em casa". O rapazinho compreendeu a advertência e resolveu a prosseguir nos estudos e hoje tem um bom gabinete em Palmeiras, com boa clientela.

O casal José Vieira e Maria Domingas, rodeado dos filhos e netos, festejou as Bôdas de Ouro, com missa celebrada lá no Sítio e lauto banquete oferecido aos filhos, parentes e amigos.

Um comentário: é ou não invejável o modo de proceder de um casal que apesar de sua pouca instrução , deu aos filhos todos um diploma, evitando que os mesmos se atirassem aos duros trabalhos da roça? É digno de imitar.

 

Presente de aniversário

Joanito, depois de formado, ficou uns tempos clinicando em Santa Cruz. Com a clínica em vez de dar lucro estava é dando prejuízo. Ele não sabia cobrar e muitas vezes ele devolvia ao cliente o que havia ganho do exame, em virtude do estado do doente. Desta forma acabou ficando devendo. Custou a tomar uma atitude. Diariamente ele ouvia um sermão de uma das irmãs aconselhando-o a ir clinicar em Ponte Nova onde havia probabilidade de fazer carreira. Afinal resolveu e lá abriu consultório. Foi feliz. Dentro de pouco tempo ele tinha ótima clínica e era bastante considerado. Comprou casa e arranjou namorada. Como ele era um rapaz ponderado resolveu não protelar o namoro. Ficou noivo. Tratou logo de arranjar o necessário para montar uma casa. Antes das bodas ele comemorou mais um aniversário – dia 14 de julho. Nesse dia fiz uma brincadeira com ele mandando-lhe uns versos. Lá em nossa casa, no meio dos talheres, havia uma colher toda amassada e Joanito tinha uma birra quando encontrava na mesa, a hora das refeições, a colher junto ao seu prato. No dia do aniversário, arranjei a tal colher com um belo laço de fita, coloquei-a numa caixinha, acompanhada destes versos, endereçada a ele. Eis os versos:

Fazes hoje mais um ano,
Ó querido e caro mano!
Por isto venho abraçar-te
E também felicitar-te,
Em versos de pés quebrados
E... quem sabe? mal rimados.
Não sei se vou acertar:
Um mimo vou te mandar.
Não é jóia, é raridade
Que não há nessa cidade.
Mas, vale a pena, Joanito
É um presente bonito!
No dia do casamento,
(Ajuda-me pensamento)
Darás a tua mulher
De presente, esta colher.

Alguns anos depois Joanito esteve muito doente. Ele foi sempre muito nervoso. Na convalescença da pneumonia ou pleuriz, encontrei-o tomando uma Emulsão para se restabelecer. Ao ver-me ele pegou na colher amassada e me disse: "A sua colher agora teve sua serventia, pois foi a única que entrou no vidro da Emulsão que estou tomando. Sempre teve alguma serventia".

 

O roubo

Em Santa Cruz do Escalvado, antigamente, as Festas Religiosas eram animadíssimas, especialmente as Festas do Divino Espirito Santo. Além dos habitantes do distrito, vinha muita gente de longe. O arraial ficava movimentado, dava gosto! Os botequins surgiam por todos os becos para a venda de biscoitos, café e bebidas. Muita gente fazia seu pé de meia. Certa vez foi anunciada uma dessas festas num programa formidável. Havia Castelo (fogos de artifício), Banda de Música de Ponte Nova e muita cousa mais. Todo mundo fazia roupa nova para a festa. E a notícia corria até fora das fronteiras... lá do lado de S. Geraldo, surgiram três Senhores para assistir os Festejos e pediram hospedagem a Papai. É preciso notar que lá em Santa Cruz não havia Hotel e papai foi forçado a reservar uns quartos no andar de baixo da nossa casa para dar hospedagem as representantes das Casas Comerciais das quais ele era freguês. Quando chegava um Comêta todos ficavam alertas pois este era precedido de uma tropa bem ajaezada, com uma porção de guisos que chamavam a atenção. Ao ouvir o tinir dos guisos as janelas ficavam cheias de curiosos.

Dada esta explicação voltemos aos três hóspedes desconhecidos. Papai, mesmo contrariado, acabou dando pousada aos "caras". No dia seguinte – dia da Festa, os hóspedes abriram uma banca de jogos. Havia até roleta. Mais contrariado papai ficou pois ele abominava o jogo. Na festa tudo correu muito bem. Muita gente e muita ordem. Findos os festejos os jogadores pagaram a hospedagem e partiram.

Poucos dias após a Festa, uma das portas do negócio de papai foi arrombada e os ladrões foram direto a escrivaninha, que foi também arrombada e levaram todo o dinheiro – produto das vendas nos dias da festa. Os ladrões observaram o lugar onde papai guardava o dinheiro, quando fizeram pagamento da hospedagem. Rasparam tudo e foram embarcar em Chopotó para despistar caso houvesse busca. Papai ao verificar o roubo deu alarme, pediu providência ao Delegado de Ponte Nova. Fez o que poude mas ninguém tomou providência embora a suspeita recaisse nos três jogadores. E com isto foi-se o resultado do trabalho de papai nos três dias de festa. Joanito era bem criança mas já estava se preparando para ir para o Ginásio Mineiro de Barbacena afim de fazer os preparatórios. Ao ter conhecimento do roubo, do prejuízo que papai teve, botou a boca no mundo numa choradeira sem fim –dizendo: "Agora não posso mais estudar porque papai ficou pobre! Os ladrões levaram tudo!" e as lágrimas escorriam como goteiras... Custou a se convencer que a desgraça não era assim tão grande.

 

Nossos teatros

Nossa casa sempre foi muito alegre pois vivíamos inventando meios de nos divertirmos. Ora era baile, passeios a cavalo, pic-nic, etc. Mamãe, sempre apoiando nossas idéias, nunca nos contrariava. Era a melhor das mães! Muitas vezes arranjávamos teatrinhos. Levávamos a idéia a sério com ensaios regulares, cada qual estudando mais o seu papel para não fazer feio. Quiquinha parecia a Diretora da Companhia: mandava e desmandava e era obedecida por todos. Carregávamos taboas e caixões para armar o palco na sala de visitas que era o maior compartimento da casa. Tudo bem estudado e bem ensaiado, era marcado o dia do espetáculo. Ioió fazia os convites pois a brincadeira era gratuita. A sala ficava repleta pois além de ser de graça, Mamãe oferecia ao povo café com biscoito! Pondo de parte a modéstia, posso asseverar que representávamos bem. É verdade que havia senões, mas isto é natural para quem não é artista de verdade. Certa vez levamos um drama. Numa das cenas o ator tinha que ler e queimar em cena uma carta. Como houvesse se esquecido de colocar no bolso a caixa de fósforo, rasgou a carta e jogou os pedaços no chão. O personagem que entrava em cena tinha que dizer ao entrar: "que cheiro de papel queimado". Mas como não havia nenhum papel queimado, ele olhou para o chão e foi dizendo: "que cheiro de papel rasgado". Branca, que servia de ponto, não se conteve e começou a rir sem parar. E como o riso é contagioso, quem estava em cena não se conteve... Foi preciso abaixar o pano para não aumentar o fiasco. Noutra ocasião levava-se um drama. Logo no 1º ato devia haver um tiro de artilharia. Arranjou-se uma espingarda carregada com pólvora seca e o Juca Sette ficou incumbido do disparo na hora exata. A cena ia muito bem. Era um diálogo entre Zinha e Quiquinha, ambas vestidas de homem. Na hora combinada, Juca puxou o gatilho da espingarda e o tiro estrondou. Com o forte estampido, Juca atirou a espingarda ao chão e tapou os ouvidos... Em cena Quiquinha devia perguntar a Zinha: "O que é isto?". Zinha devia responder: "Está salvo!" mas com o susto respondeu: "Um tiro". Percebendo o erro, ela cobriu o rosto com as mãos e caiu na risada. Como já estava no fim do ato, o pano desceu e as palmas reboaram...

 

Teatrinho "Flor de Liz"

Era este o nome do nosso teatro. O elenco fazia temporada até que houvesse reclamação dos atores. De sorte que de um espetáculo a outro o espaço era pequeno. O palco continuava armado na sala de visitas. Recordo-me de um espetáculo que demos cujos artistas mirins resolveram fazer fiasco. Creio que não foi de propósito. Mamãe costumava dar a turma um pouco de Vinho do Porto para criar coragem... e é sem dúvida isto a causa do fiasco. Estudamos a comédia intitulada: O Espantalho do Falcão. As partes estavam bem decoradas e ensaiadas. Personagens: Quiquinha, Zinha, Joanito, Juca Sette e eu. A turma mirim estava entusiasmada. O enredo da comédia era mais ou menos este: O dono da casa tinha uma boa criação de galinhas. Ninguém tinha licença de mexer com elas, nem para arrancar penas para fazer peteca. Era um barulho. Os três garotos (Joanito, Juca e eu) planejaram uma arte e trataram de executá-la. O plano constava do roubo de uma galinha e depois dela bem preparada e assada, os três viriam saboreá-la bem em frente ao galinheiro. Tudo pronto, arranjaram uma cesta, 3 copos, vinho e a galinha e foram para o local escolhido. O tio deu falta da galinha e quis descobrir o ladrão. Foi cedo para o galinheiro, vestiu a roupa do espantalho e subiu no telhado ocupando o lugar do espantalho. Momentos depois chega a turminha com o cesto tratando logo de se acomodar no chão, falando baixinho para o tio não perceber. Abriram o cesto e logo foi servido o vinho. Enquanto um deles destroncava a galinha sentiram o baque de uma pedrinha no meio deles. Assustados olharam para todos os lados e não vendo ninguém continuaram o trabalho. Quando começaram comer, o tio, lá do telhado, atirou neles uma bombinha que arrebentou pregando um susto na turma. Juca, que era o mais medroso, gritou: "Eu fujo" mas continuou saboreando a galinha. O tio desceu do telhado e veio, pé ante pé, para perto deles. Que susto! Não sei onde foi parar o resto da galinha! O tio, depois de passar neles um sabão daqueles, retirou-se levando a cesta. Os garotos perderam as estribeiras... talvez o efeito do vinho. começaram a dizer: "agora é você quem fala, Joanito e este retrucava: "não, é a vez de Juca", até que se levantaram e foram para perto do "ponto" para verificar de quem era a palavra. Branca, fazendo o ponto, ria a mais não poder. Quiquinha, vendo que aquilo não tinha fim, mandou descer o pano. Percebeu que os meninos tinham abusado do vinho... Por causa do fiasco eles quase apanharam.

E era assim o teatro dos garotos...


Escola do Pongó

Lá na minha terra tem um distrito denominado S. José da Vargem Alegre mas, não sei por que razão, todo o mundo chama lá de Pongó. A topografia do lugar não é feia. A vila está situada numa baixada. Se as casas fossem construídas em estilo moderno, suplantaria a sede do município. Quando eu ia a cavalo para a Fazenda de S. Tomé – residência de minha tia e madrinha, gostava de galopar para chamar a atenção (quem galopava era o cavalo...). Levantava a poeira que escurecia a rua. Nas janelas surgia muita gente para apreciar a cavalhada...

Naquele lugar havia uma Escola regida por D. Rosalina E. de Freitas, esposa do Sr. Mendes – um homem que vivia com o rosto amarrado com um lenço. D. Rosalina era senhora de pouca cultura mas gostava de ensinar o pouco que sabia. Sua escola era mista pois era a única da vila. À hora da aula a garotada fazia uma garalhada ensurdecedora e a Mestra, de vez em quando, aplicava umas varadas para "inzemplá", como dizia o Sio Mendes. Depois de freqüentar a Escola alguns anos, os meninos saiam sabendo ler e escrever mal e fazerem as 4 operações. Um dia D. Rosalina pensou: "preciso ensinar gramática aos meus alunos, todo mundo ensina e eu não quero ficar por baixo". Mandou pois comprar em Ponte Nova uma gramática e toca a ensinar a trancos e barrancos. Quando chegava a época dos exames ela, com antecedência, preparava os tarecos e doce de leite para oferecer a banca examinadora e aos alunos. O Inspetor vinha de Santa Cruz e os examinadores da Fazenda de Laranjeiras. E... mãos a obra. Ela enfatiotava-se com o melhor vestido, cobria a mesa dos exames com uma toalha de crivo e ao iniciar os trabalhos ela apresentava a lista com o nome dos alunos. E o exame principiava. O Inspetor fazia a chamada: "Ozehio Menêis". Lá vinha um pedaço de menino quase rapaz, assentava-se no tamborete e a professora punha-se a examiná-lo. Começava pela leitura, depois aritmética e por fim a gramática. O menino era sabichão. Depois arguia sobre substantivo, artigo, adjetivos, com os respectivos exemplos. O examinando trazia tudo na ponta da lingua, dava gosto.

Ela fez as seguintes arguições: "Me dê um exemplo de uma cousa da terra". E o menino respondia rápido: "Morro, buraco, socavão". E do Céu? E o aluno respondia: "Raio, corisco e trovão". E alguma coisa doce? Lá vinha a resposta: "Melado, puxa-puxa e cidrão". "Muito bem" ela dizia. E toda contente dava a nota: Distinção, e o mesmo saia da banca examinadora todo inchado... E assim prosseguia até o fim. Terminados os trabalhos, foram encerrados com o Hino Nacional cantado pela meninada numa bela desarmonia. Cantavam assim: "Ubira do pirança as margens fracidas, etc". e assim era encerrado o ano letivo da Escola do Pongó.


Picolé

Lá em Santa Cruz as novidades eram raras. Pelo menos é este o meu pensamento, não sei se devido o meu afastamento da sociedade, limitando-me aos trabalhos do Grupo Escolar e, aos domingos, ao ensino do catecismo. Logo que o Clovis pôs a trafegar um ônibus misto – pois carregava cargas também – aquilo era uma grande novidade. O pessoal da roça começou a freqüentar Ponte Nova só para viajar de ônibus. Era raro o dia que o veículo ia com pouca gente. As mais das vezes ia cheio de homens e mulheres que inventavam de ir fazer compras em Ponte Nova, onde tudo era mais barato, no dizer deles. E lá ficavam a andar de baixo para cima até chegar a hora da partida. As 15 horas em ponto o relógio da Matriz dava 3 badaladas e todos os ônibus dos distritos se movimentavam. Era uma correria de passageiros retardados. O capiáu achava aquilo pra lá de bom...Em casa contava as novidades e botava água na boca dos que ficaram. Certa vez, certo homem cujo nome me falha resolveu a dar uma espiada na cidade tão falada. Ao dizer o "Até logo" a patrôa esta lhe recomendou: "Não se esqueça de trazer o picolé que te pedi". E lá se foi o freguês procurando gravar na memória a encomenda de Sá Chica. Em Ponte Nova, quase a hora da partida dos ônibus, ele se lembrou da encomenda da patrôa. Correu no Bar e comprou o picolé e foi depressa tomar o ônibus. Como tinha comprado 2 picolés, colocou um no bolso do paletó e foi saboreando o outro. E foi por ali a fora, sentindo um friozinho nas imediações do bolso, mas não desconfiou de nada. Chegando em Santa Cruz, ao descer do ônibus, foi apalpar o bolso para tirar o picolé, sentiu a calça toda molhada e melada e só encontrou o pauzinho do picolé. Ficou num ""guaruão"" levado receando a troça dos companheiros...

Naquela mesma ocasião, num onibus de S. José dos Oratórios, desceu na Avenida Caetano Marinho um punhado de gente. Entre o pessoal estava uma senhora gorducha que ia fazer compras e pagar impostos na Coletoria bem junto ao Bar. Terminado o que foi fazer andou pela cidade, apreciou as vitrines e quando faltava poucos minutos para a partida do onibus, ela foi depressa no Bar e comprou 5 picolés. Entrou no onibus, se acomodou, e depois desenrolou um picolé, provou e achou aquilo uma delícia! Os 4 restantes ele não sabia aonde po-los, por isso espetou-os no seu enorme coque e continuou a apreciar a gostosura do picolé. O resultado foi espetacular. Ela ficou com as costas lambuzadas e frias e os 4 pauzinhos espetados no cabelo....


Cantidio Drumond

Encaro como um dever de gratidão traçar algumas linhas homenageando o meu excelente amigo e benfeitor Cel. Cantidio Drumond. Se na vida fui alguma cousa - socialmente falando - devo a ele. Se hoje tenho um meio de não ser muito pesada aos meus devo a Cantidio Drumond. São inúmeros os favores que lhe devo sendo o maior, o principal, a minha nomeação como professora primária, apesar de não ser portadora de um Diploma. Com a realização da Semana Ruralista em Ponte Nova, graças ao Cel. Cantidio, tomei parte saliente, adquirindo amizades como a de Raul de Paula - chefe da comitiva vinda do Rio para o certame. Entrei em contato com o professor Dr. Helio Gomes da Academia de Direito, do Dr. Magalhães Correia da Escola Politécnica e um sábio, do Instituto de Manguinhos e muitos outros cujos nomes não me recordo. Não fôra Cantidio Drumond eu ficaria na obscuridade. Grangeei a amizade de Raul de Paula, cuja amizade cultivei até que ele desaparecesse entre os vivos.

De tudo guardo imorredoura saudade especialmente do meu grande amigo Cel. Cantidio Drumond.


Quiquinha e Juquinha

Lá pelos lados do Quilombo, num sítio prospero, morava uma família bastante considerada em Santa Cruz. A família era composta de 4 membros: Antonio, Joaninha, Juquinha e Quiquinha. Era gente trabalhadora e com isto conseguiu arranjar o seu pé de meia. Os filhos do casal frequentaram as Escolas do arraial. Ao conquistar o certificado de aprovação, os pais tiveram a louvavel ideia de pô-las no Colégio a fim de conquistarem um diploma que daria a eles mais importancia. Pensaram e agiram. Juquinha foi mandado para Ubá onde havia um curso de Odontologia e a Quiquinha foi para o Colégio Providencia, de Mariana. E os pais, na roça, cavavam as direitas para que nada faltasse aos dois. Decorridos os anos necessários para receberem o gráu (sem bomba) os estudantes regressaram ao lar carregando os diplomas e muitas esperanças, dando muitas alegrias a seus pais. Num instante o Juquinha arranjou um gabinete dentário e começou a trabalhar. A Quiquinha arranjou colocação no Grupo Escolar "Dr. Otavio Soares". E Joaninha, toda pernóstica, dizia a todo mundo: "A Quiquinha estudou para dar e o Juquinha para tirar". Isto, trocado em miúdo, quer dizer: dar aulas e tirar dentes...


Por causa de um tico-tico

Foi um tico-tico o culpado da surra que apanhei do Joanito e da severa repreensão de Papai. O caso foi assim: Joanito gostava muito de apanhar passarihos. Ora armava alçapão, ora esparrela, as vezes uma peneira ou balaio. Ficava horas e horas nessa labuta de prender e soltar passarinhos. Certa vez, ele estava empenhado em pegar um tico-tico e este, muito arisco, nada de cair na armadilha. O mano então arranjou uma peneira e amarrou um barbante comprido num pauzinho e armou a armadilha tendo o cuidado de espalhar  no local um punhado de fubá grosso. Ocultou-se à distância e ficou a espera que o passarinho caisse. Por um acaso cheguei na janela de um quarto lá de cima e comecei a observar a manobra. Naquele momento passou-me pela idéia uma maldade: impedir que o passarinho caisse na peneira. Fiquei, pois, na tocaia observando: assim que o tico-tico se dirigia para a peneira em busca do apetitoso fubá, eu de cima atirava uma pedrinha e a peneira desarmava. Joanito intrigado armava de novo e eu, repetindo o malfeito desarmava de novo, até que ele descobriu o malfeitor. Em dois tempos ele, fulo de raiva, galgou a escada sem me dar tempo de escapulir. Apanhei cada pescoção que fazia pena! Quando eu quiz tirar a diferença e havia me engalfinhado com ele, surge papai. E foi aquela água... Parecia que só eu era a cruel e no entanto eu estava com as costas quentes... Eu tremia na presença de papai e no entanto ele não era mau, só franzia a testa e dava pitos. É verdade que eu receiava umas chineladas. Papai todo sério dirigiu-se para onde estava Mamãe e dele ouví a minha sentença: "Trate de arranjar essa menina para ir para o Colégio, pois ela está insurpotável!". E o culpado disto tudo foi o tico-tico magricela e feio.


Lenda da Pedra do Escalvado

A lenda faz parte da vida poética de um povo. Não é só no país de barbaros e gentios que o pôvo tem sua crença em cousas sobreneturais e em aparições. Lá no velho mundo, em cada terra, em cada canto há uma lenda que faz vibrar a alma dos simples. Tambem o nosso Brasil não foge a este rítmo, e por conseguinte é rico de lendas, e algumas como são poéticas! É natural que Santa Cruz do Escalvado possua algumas. Vou citar uma, das 3 que conheço, e esta gira em torno da Pedra do Escalvado. O viajante passando por aquelas plagas é surpreendido pouco antes de entrar na cidade, na estrada que liga o município ao distrito de Rio Doce, por um gigante de granito que domina uma grande extensão. O apreciador de cousas da natureza se extasia ante a magnificência de tão grandioso espetáculo. Desde os meus tenros anos ouvia dos dos velhos habitantes daquelas cercanias, que no dia 2 de fevereiro - dia da Purificação de Nossa Senhora - mais conhecido por dia de N. Sra. das Candeias - os moradores das vizinhaças observavam bem lá no cimo da Pedra uma mulher de incomparável beleza, trajando vestes de uma alvura singular, envolta num manto azul salpicado de estrelinhas brilhantes, percorre a Pedra em toda sua extensão, levando em uma das mãos uma Candeia acesa. É Nossa Senhora que que no dia de sua Purificação vem abençoar o filete d'água que despenca pela rampa caindo em baixo em gotinhas prateadas fazendo daquelas gotas a Água Milagrosa que cura todos os males. Até hoje, muita gente atesta que vê Nossa Senhora, e se alguem duvida é taxado de herege.


Outra Lenda

Quando eu era garotinha ouvia contar dos mais velhos a seguinte lenda: - No lugar denominado Sobrado em Santa Cruz do Escalvado, morava uma viuva que tinha em sua compania uma afilhada de nome Francisca com a idade de 12 anos mais ou menos. Viviam as duas de seu modesto trabalho: a viuva mourejava na roça enquanto a pequena cuidava dos arranjos de casa. E a vida para elas corria normalmente. Certa vez a viuva deixou de ir ao sitio para fazer uns arranjos na casa. Enquanto ela espanava e varria, mandou que a pequena levasse o pote para apanhar água fresca na fonte. A menina apanhou o pote com muito má vontade pois não estava disposta a trabalhar. Seguiu devagarinho e pelo caminho distraiu-se com um casal de rolinhas, tropeçou dando com o pote numa pedra e... era uma vez um pote... Que susto a pequena levou! Sentiu um medo pavoroso da madrinha pois imaginava a surra que iria apanhar. Encostou-se num tronco de árvore e pôz-se a chorar. De repente teve uma ideia e, chegando-se para mais perto do poço começou a gritar e a bater palmas gritando: "Madrinha corre cá. Vem ver Nossa Senhora lá no fundo do poço. Ela está rindo para mim, vem ver Madrinha". A viuva, diante do apelo da menina, correu e foi ver o que estava acontecendo. A menina apontando para o poço dizia: "Olha lá, ela está rindo". Num dos giros para ver a Santa, a viuva deu com o pote quebrado e quando ia feita para castigar a menina, esta começou de novo a gritar: "Olha Nossa Senhora. Ela está rindo. Minha Nossa Senhora, não deixa Madrinha me bater. Nossa Senhora está rindo, Dindinha". Diante de tanta insistencia, a viuva acabou ficando convencida que de fato a menina estava vendo alguma coisa. Daí por diante quando Francisca ia ao poço e presentia alguem, gritava: "Olha lá Nossa Senhora, ela está rindo". A nova correu de boca em boca e todo mundo queria ver a aparição. Vinha gente de toda parte e era desusado o movimento. Acampavam ao redor do poço resando e cantando hinos sacros. Toda gente queria presenciar o milagre e a maioria vinha em busca da Água Milagrosa. Enchiam de presente a predestinada e com isto a viuva ficava entusiasmada porque lucrava tambem alguma coisa. O comercio muito lucrou com a romaria. Constou que um fotógrafo de Piedade, trouxe a máquina fotográfica, e no momento que a menina dizia que Nossa Senhora estava rindo lá no fundo do poço ele fingia que tirava uma fotografia e para explorar os simples vendia retrato de Nossa Senhora. Essa romaria durou muitos meses, vindo gente de todos os lados, mas não consta que alguem tenha visto Nossa Senhora. Cessaram as romarias mas a lenda ficou junto do poço. Conhecí a heroína dessa lenda ficou com apelido de La Chica Santeira.


Professor, e a vaca?

Lá longe, bem distante destas plagas fluminenses onde estou no momento, lá na zona da Mata, existe uma cidadezinha muito feia, além de pequena, sem atrativo algum. Não obstante, esta cidadezinha ocupa uma área bem grande no domínio do meu coração. Foi lá que nasci, cresci e passei os melhores dias de minha vida. Lá tambem tive as minhas ilusões e desilusões. Quem é capaz de passar pela vida sem tê-las? A vida é toda cheia de altos e baixos... já dizia o Conselheiro Acácio...

Lá na minha terra desde o século passado existia escolas públicas. Duas delas eu me lembro: a do sexo masculino e a do feminino. Nesta última só conheci duas professoras: minha Mestra D. Mariazinha e D. Cesarina que trabalhou durante 35 anos integrando-se depois nas Escolas Reunidas criadas em 1936 ou 37. Pela cadeira do sexo masculino passaram diversos professores entre os quais cito os que me recordo: Sio Felicio, Sio Chico Mayrink o Mestrinho, Zé Maria e Raimundo Nonato Ramos. A maior curiosidade da época foi a escola particular do Sr. Sebastião Rabelo. Ele era um tipo da roça, com foros de Mestre Escola. E tinha legião de alunos. O método de ensino era todo dele. A meninada estudava em diversos livros cada qual numa lição. Na hora do estudo era uma algazarra medonha, não se entendia nada. Para os casos de tabuada ele adotava uma música para cada operação em rítmo cadenciado. Um garoto com voz estridente começava e o resto respondia na mesma toada. Finda a cantarola principiava o argumento e a meninada atenta de olhos fito na palmatória esperava os acontecimentos.

Outro professor original era o Sr. Raimundo Nonato Ramos. Ele era funcionário do Estado. O seu método de ensino era original e não dispensava os cascudos tira teimas. Desejava ensinar canto que fazia parte do programa mas não tinha voz. Apelava então para o violino de uma corda só. A certa hora, dava o sinal, a garotada punha-se de pé e o violino entrava em ação acompanhando a meninada no hino:

Ó vinde meus meninos
A Escola frequentar. etc.

Sio Raimundo era todo exótico. Era feio como a necessidade e era cheio de manias. Uma ocasião ele deu para jogar no "bicho" e não aceitava palpite de ninguem. Quando cismava com um bicho era só nele que jogava. Certa vez deu para acompanhar a vaca. Levou uma temporada só jogando na vaca. Gastou dinheiro que não foi vida. Afinal cansou e passou a jogar no leão. Não é que a vaca resolveu a dar a sorte pregando uma grande peça no Professor? O homenzinho ficou "buzina" com a vaca e ninguem podia, nem de brinquedo, pronunciar aquele nome perto dele, que era um Deus nos acuda!  Pouco a pouco foi se acalmando até que resolveu sair de casa e dar um giro pelas ruas. Passando em frente a casa de Bujinha resolveu entrar. Depois dos cumprimentos aboletou-se num banco disposto a dar um dedo de prosa. Foi quando Sa Doce, vindo da cozinha, veio cumprimentá-lo e, para puxar confersa, perguntou: "Professor, e a vaca?". Foi o bastante para o homem levantar-se, dar uma resposta malcriada e sair fuzilando pela rua, maldizendo a vaca e toda sua geração. Imagina com que cara ficou Sa Doce que fez a pergunta sem maldade?!


Cordão de ouro e memória

Tenho mais uma para contar de Sia Simpliciana Nobre. Como já disse ela era cheia de cacoetes interessantes. Não sabia falar em voz moderada de sorte que quando ela entrava na loja do Papai o alarido era tão forte que chamava a atenção. Era freguesa certa de papai ou a prazo ou a vista.

Certa vez o marido dela, Sio Luiz Nobre, estava muito doente. Papai ao vê-la indagou sobre a saúde do velho. Ela foi logo respondendo: "Qual, Sio Capitão, o véio tá morreno todo o dia e nunca mais que morre..." Deu uma volta, apreciou a vitrine e em seguida disse: "Sio Capitão, eu tenho um reservado com o Senhor" e foi lá para um cantinho distante dos freguezes. Papai supôs que ela queria um médico para examinar o doente e foi atendê-la. Então a velha, desta vez, falou baixinho: "Sio Capitão, o Senhor pode mandar vir para mim um cordão de ouro e uma memória?". Papai caiu das nuvens e pensou: "Esta velha ainda não ficou viuva e já pensa em se enfeitar para arranjar outro trouxa...!"


Civilismo

A nossa fama de politiqueiras corria mundo. Tanto isto é verdade é que em vesperas de eleições disputadas recebiamos cartas e circulares de candidatos pedindo nosso apoio. Confesso que eu entrava na brinacadeira como meio de diversão. Todavia ficava satisfeita quando chegava em minhas mãos alguma circular ou carta dos candidatos.

Uma vez recebi carta de Calogeras e fiquei toda inchada. Respondi-lhe que podia contar com a vitória em Santa Cruz. Depois a votação dele foi transferida para outra zona e eu dei graças a Deus porque havia afiançado uma coisa problemática.

Até comício faziamos. Arregimentávamos grande número de senhoras e moças assim como homens: arranjavamos Banda de Música e foguetório e faziamos um giro pelas ruas. Em algum lugar mais movimentado, lá vinha um discurso inflamado. Como prova do que estou dizendo transcrevo aqui um discurso que pronunciei por ocasião do civilismo focalizando a eleição de Rui Barbosa.

Meus Senhores.

Tambem eu, saindo da minha obscuridade, venho dirigir-vos a minha palavra. É certo que a minha ousadia não vos surprenderá, pois não é a primeira que o sexo frágil, servindo-se de sua menor representante, vem na praça pública manifestar as suas idéias e exaltar o seu ideal. O nome do egregio brasileiro que neste instante glorificamos faz vibrar as mais sensíveis cordas do nosso órgão afetivo - o coração. Quem ao ouvir pronunciar o nome glorioso de Rui Barbosa, não sente em seu ser um desdobramento de todos os sentimentos bons pois Rui Barbosa é a alma da Pátria. Pronunciando o nome de Rui Barbosa sentimos a nossa alma genuflexa diante do magestoso vulto que tanto engrandeceu o nosso Brasil. Ao falecer o Sr. Conselheiro Rodrigues Alves, Presidente da República, o nome do gloriosa Rui Barbosa surgiu qual farol único capaz de salvar o Brasil prestes a sossobrar nos escolhos da politicagem vil e mesquinha. E em cada coração da maioria dos brasileiros apareceu radiante o nome do venerando Patrício para governar os nossos destinos. No entanto, meus queridos conterrâneos, a treva rebelou-se contra a luz. Da treva de uma malograda convenção partiu um grito de guerra contra a aspiração de todo brasileiro genuinamente independente. A rebelião chegou até nós, infelizmente. E o que estamos vendo, cidadãos? Companheiros de ontem terçar armas covardemente contra seus correligionários. Com que empenho, patrícios meus? Interesse? Nada lucrarão com isto se não a quebra de carater. E para engodar a alma ingenua do povo, eis que aparecem promessas irrealisaveis. Os apostolos da candidatura inválida, não encontrando simpatia no seu candidato, procuram arrancar o voto do povo simples por meio recompensas falazes. Não acrediteis nisto, meus senhores! De promessas já andamos fartos. Ao aproximar uma eleição disputada é sempre esta cantilena. Aonde estão as pontes estudadas pelos Engenheiros Achias Medrado e Gilberto Alcantara? Foram-se com as eleiçãos. O memso sucederá com as nossas pontes, nossas estradas, etc. Que ironia! Oh! povo independente de Santa Cruz do Escalvado! Concito-vos a conservar a vossa tão celebrada independência. Sustentai o vosso passado de lutas e a atitude mantida em 1919. Não vos deixeis levar pelos engodos de interesseiros que se servirão de vosso prestigio para galgar posições deixando-vos no esquecimento. Ao terminar quero confiar-vos o meu maior sentimento: apezar de ser contra o voto feminino e achar que a missão mais nobre da mulher é no lar, na formação do carater dos futuros defensores de nossa Pátria, lastimo não gosar do direito do voto para glorificar-me sufragando nas urnas o nome do maior vulto da nossa história, - o Sr. Conselheiro Rui Barbosa!

Tenho dito.


Liga Santa Terezinha

A nossa Matriz estava necessitando de reconstrução, pois já havia caído uma parede e o telhado estava prestes a arriar. Afinal de contas a Igreja precisava mesmo de uma reforma. Sem ter siquer um tostão no bolso, tomei a iniciativa de arranjar as telhas necessárias. Escrevi logo para uma ceramica sabendo o preço de milheiros de telhas. Mandei calcular o quanto precisava e fiz logo o pedido. Depois imaginei o seguinte: Como vou me arranjar para obter dinheiro para fazer o pagamento? Eu não era ainda professora, portanto não podia contar comigo. Tive então a ideia de organisar uma Liga para trabalhar, imitando uma organizada em Ponte Nova. Aproveitei a estadia do Pe. Antonio Carlos que lé estava auxiliando numa festa religiosa. Convidei um grupo de moças e reunimo-nos com a presença do Pe. Antonio Carlos e este explicou tudo direitinho. A fundação tomou o nome de "Liga S. Terezinha" e puzemos mãos a obra. Promovemos teatrinhos, quermesses, venda de doces, etc. Num domingo movimentado convidei as moças para irmos a rua brincar de roda e com esta faziamos prisioneiros todos que por lá passavam. Para sair da prisão tinham que pagar carceragem. Como chamariz cantavamos os seguintes versos:

Meus senhores e senhoras,
Um pouquinho de atenção:
Queremos uma esmolinha
Dada de bom coração.

Somos todas companheiras
Da Liga da Theresinha.
Quem entrar nesta prisão
Ha de dar sua esmolinha.

Precisamos trabalhar
Para as obras da Matriz.
Quem nos der a sua esmola
Ha de ser muito feliz.

Pedimos a Terezinha,
Que do ceu faça chover.
Muitas bençãos, muitas graças,
Para quem nos acolher.

Foi um sucesso! e fizemos boa féria. Só sei dizer que com a renda dos theatros, quermesses, prisões e vendas de doces, pagamos todas as despesas, graças a Deus!


Minha Biografia

No final do ano de 18... e lá vai fumaça, nascia em Santa Cruz do Escalvado uma garotinha esmirradinha que chegara inesperadamente causando muita surpresa até de sua própria mãe que havia se esquecido de preparar o enxovalzinho, ou havia deixado para a última hora. A recém-nascida teve que enfatiotar-se com os mulambinhos de sua irmã mais velha. A menininha era gulosa e muito chorona, tanto assim que foi necessário arranjar uma ama - a Manoela, escrava dedicadíssima - que muitas vezes privava a sua filhinha Beatriz do leite que tinha direito para reservá-lo todinho para a sinhazinha, senão o berreiro era inevitável. Na Pia Batismal deram-lhe o nome de Georgêta - nome tirado de um romance lido por uma de suas tias dada a leitura... Aos quatro mêses de idade a pobrezinha quase se transformou em torresmo em virtude de um pavoroso incendio à noite. Este incendio que destruiu quase por completo a sua morada. A pobrezinha foi retirada pela janela por um popular. Aos 7 anos Georgeta foi matriculado numa Escola Pública. Pelos bancos daquele educandário jamais passou estudante tão vadia. Gastava um livro por mês e um caderno por semana e nunca sabia a lição e nem entregava a escrita. Naquela época travou amizade com uma vizinha e daí começou a burlar a vigilancia de seu papai. As 10 horas almoçava e em seguida carregava o seu bauzinho de folhas e corria para a porta da rua esperando que o seu papai se distraisse e então mudava o roteiro da Escola. Ia direto para a casa da vizinha, escondendo-se numa enorme barrica - depósito de milho - e por lá ficava amoitada o dia todo até ouvir o canto entoado pelas alnas da Escola anunciando o término das aulas. Mais que depressa saltava da barrica e confundia-se com a meninada. A Mestra não reclamava a falta da aluna, até dava graças a Deus. E as artes continuaram. Percorria, sem licença dos Pais, diversas casas do arraial, tomando refeição em todas elas, ora numa ora noutra, e em casa, a hora das refeições mal tocava nos petiscos. A sua Mamãe muito aflita dizia: "Esta menina precisa tomar um tonico para voltar-lhe o apetite, pois não come nada e pode adoecer". E nesta boa vida foi crescendo a garota até que seus Pais deliberaram mandá-la para o Colégio Providência para ver se tomava propósito. No colégio fazia de tudo, menos estudar. Experimentou toda a sorte de castigos existentes naquela casa e no fim de 2 anos regressou ao lar quasi como havia partido. Aprendeu Religião, é justo que isto seja anotado. Já mocinha passou a frequentar o Colégio N. A. Auxiliadora em Ponte Nova e, a custa de camaradagem da Diretora do Colégio, conseguiu arrancar na "bacia das almas" um fraquissimo 1º Ano Normal, pois, a mesma, a medida que crescia em idade, crescia em vadiação. Por motivo de moléstia não poude continuar o curso. E aqui está a primeira etapa de vida da endiabrada menina.

Aos 16 anos Georgeta era uma mocinha bastante insinuante e simpática com o seu olhar brejeiro... Com tais predicados não faltavam admiradores, isto é bem verdade.... Todavia... vamos empastelar este capítulo delicado da vida da Georgeta... e prossigamos. Entre os seus admiradores havia um Vate que lhe deu de presente uma veia poética, e desde então a mocinha disparou a escrever versos sendo o seu tema predileto a Saudade. Esqueceu-se que o tempo vôa e a mocidade passa de repente. Quando percebeu, já estava em plena subida do Calvário da vida sosinha, sosinha... sem encontrar um Cirineu para lhe ajudar carregar a sua cruz na subida da vida...
O destino fez da menina vadia uma professora e ela, nessa tarefa nobilissima procurou transformar seus alunos de lôbos em cordeiros. Mas ainda sente saldades de suas peraltices. E nestas recordações e saudades soube impor a disciplina no Estabelecimento que dirigia com bastante energia sendo entretanto indulgente e amiga da garotada.

Quase no fim de sua vida, georgeta tornou-se radioamadora. Não foi corujando que lhe nasceu este desejo de fazer parte da R.N.R. Foi depois de um comunicado através do transmissor de PY4FR seu cunhado. Foi uma rodada magnífica, um torneio de poesias, como disse o Sette Câmara - o futuro PY4HY - foi uma Tertúlia Literária onde a Ave do Paraíso, no julgamento dos componentes da rodada, ganhou de 3 X 1 contra o Hildegardo, Major Vilaça Sette Câmara e o Cotta. E a Ave do Paraíso do dia 3 de fevereiro de 1940 está hoje transformada em PY4IP, conhecidíssima nas faixas de 80 e 40 mts. pelo seu papaguear constante e sua lábia para engasofar os descristalisados, para os quais ela sempre reservava uma prosa a calhar...

E agora, depois de completado 80 anos, sente uma saudade imensa do rádio. Com um tropeço que levou na vida anda afastada do rádio, do convívio dos colegas, mas conserva com carinho o seu prefíxo como troféu grandioso e fica aguardando o chamado de Deus.


Dívida de gratidão

Nas minhas memórias, como dívida de gratidão, devo dizer algo sobre dois Arcebispos da Arquidiocese de Mariana: D. Silverio e D. Helvecio. Ambos me distinguiram muito. D. Silverio era de temperamento mais fechado, falava pouco porém era um Santo, tão humilde que era. Devo a D. Silverio muitas atenções, entre outras a Aprovação dos Estatutos da Associação das Zeladoras do S. S. Sacramento fundada por mim. Quando da inauguração de seu retrato na Sacristia da Matriz de Santa Cruz do Escalvado, fui destacada para dizer algumas palavras. Senti-me lisonjeada com a escolha e fiz o possível para não decepcionar o nosso Vigário. Quando uma das zeladoras do S. S. Sacramento procurou-me para obter para ela um lugar no Orfanato do Colégio da Providência, escreví a ele e fui logo atendida.

D. Helvecio, desde o nosso primeiro encontro, distinguiu-me com as suas atenções. Não sei se devido ao meu genio ou ser eu ex-aluna salesiana. A primeira vez que ele foi em Santa Cruz em Visita Pastoral, arranjamos uma recepção festiva com foguetório e Banda de Música. Escolhi entre minhas alunas de Catecismo uma para recitar uma poesia saudando o ilustre Prelado. A mesma recitou tão bem que chamou a atenção do Arcebispo. Resultado: ela desejando frequentar o Colégio de Ponte Nova e não tendo recursos, por meu intermédio pediu a D. Helvecio para arranjar. Ele prometeu e cumpriu. As Irmãs atenderam a solicitação do Sr. Arcebispo. Para não tornar-me muito extensa vou terminar, deixando nestas um preito de saudades homenageando a D. Silverio Gomes Pimenta e D. Helvecio Gomes de Oliveira.


Nossos vizinhos

Bem em frente a nossa casa morava uma familia de 4 membros. O chefe era dentista prático, colocava dentadura a torto e a direito. As dentaduras eram tão fortes que podiam cair em cima da pedra que não quebrava. Quem me afiançou isto foi Sa. Senhorinha, uma velha muito engraçada, que costumava abusar da caninha e ficava alegre demais... Ela uma vez me disse: "O Sete é o melhor dentista do mundo. Às vezes, quando estou esquentada, debruço na porteirinha e quando dou fé, a dentadura cai na pedra. É só passar um pouco d'água e pô-la na boca, inteirinha, sem uma rachadura. Eta dentista bão!". O Sio Sete era uma criatura engraçada, fazia a gente rir com sua prosa às vezes venenosa. A senhora dele, de nome Maria Jacinta, era alegre e tinha traços de beleza. Os filhos - um casal - eram como qualquer criança. Na residência desse casal falava-se um bocado da vida alheia. Por causa disto eles estavam tambem sujeitos a crítica, não resta dúvida nenhuma. Nós tinhamos um jornalzinho intitulado "O Nariz". Era um jornal que mexia com todos. Era publicado periodicamente e chegava misteriosamente as vistas dos leitores. Quiquinha obteve do estafeta, que era o portador do jornalzinho, sigilo e ele era sério e não revelava ao Agente do Correio. Apenas dizia, quando indagavam, que o Agente do Rio Doce entregava-lhe a guia e ele não abria, portanto não sabia o que vinha dentro. Estou fazendo referencia do "O Nariz" para relatar um fato relacionado com a família que estava focalizando. Uma vez, em uma das colunas do jornalzinho, tinha a seguinte crítica: "Cumulo da arte dentária: Sete finge colocar dentadura na boca da noite". Quando esta notícia chegou aos ouvidos de Sa. Cinta, senhora do Sete, ela ficou fula! Chegou na porta da rua, olhou para nossa casa, e disse: "É a noite chegar com a boca que ele bota mesmo". E saiu resmungando.


Finados

É sempre carregado de tristeza o dia consagrado aos mortos. São tantas as recordações! E a saudade amortecida pelo correr dos dias, surge de novo impetuosa. Até as flores que simbolizam alegria com sua côres variadas e perfumes inebriantes, são tristes no dia consagrado aos mortos, isto é, o dia de Finados em 1935, em Santa Cruz do Escalvado. Fui ao Cemitério visitar a sepultura de Mamãe e outros entes queridos nele sepultados, levando, como sempre, uma braçada de flores, e com as flores a certeza de que são sempre lembradas e as saudades são infinitas.Chegando ao Cemitério, após uma subida penosa por causa da garôa impertinente, estive longo tempo enfeitando a lousa e rezando pelo eterno descanço dos mortos queridos. Depois fui visitar outras sepulturas de parentes e alunos do meu Grupo Escolar. Foi quando deparei com um tocante quadro. Na sepultura de Titia, irmâ de Papai, foi sepultado o Clodomir, filho do Clóvis, falecido em fevereiro daquele ano, encontrei os garotos: Clomar, Clodovil e Clovinhos, espalhando flores sobre a lousa em homenagem ao seu desventurado irmãozinho. Prenderam na Cruz um galho de amoreira que o Clodomir havia plantado junto a janela de seu quarto, como sócio do Clube Agrícola Dr. Raul de Paula. Aquela lembrança dos garotos comoveu-me tanto que não pude conter as lágrimas. Curvei-me e dirigi aos Ceus uma prece por alma do infortunado Clodomir.


Xixica

Já que fiz referência a um aluno do meu Grupo Escolar, falecido inesperadamente, não posso deixar de dizer algo sobre uma outra aluna desaparecida cedo de entre os vivos. Seu nome era Francisca Carneiro Lima e tinha por apelido Xixica. Era uma garotinha de 8 anos, gorduchinha, menina inteligente e aplicada. Era o encanto de seus pais e de sua vovozinha querida. Nas Escolas Reunidas, Xixica era um modelo de aluna, por isso soube conquistar a estima de sua professora, de suas colegas e de sua diretora. Ela era um tipo de criança interessante: pequenina, rosto redondinho, olhos vivos e tinha um sorriso encantador. Nas Escolas Reunidas havia um Clube Agricola onde as crianças trabalhavam. Faziam tambem guerra destruindo insetos nocivos as plantações. Eu como Diretora das Escolas e orientadora do Clube, anotava todos os trabalhos das crianças. Xixica adoeceu gravemente pondo em sobressalto os seus. Chamaram um médico e este, após os exames, declarou tratar-se de difteria. O caso era gravissimo. A noticia alarmante correu célere nas Escolas e a meninada dizia pesarosa: "Coitada das Xixica, está de crupe! É uma doença grave conforme ouvimos a nossa diretora dizer. É capaz d'ela morrer". E todos rezavam para ela sarar. E o mal progredia. A dispneia horrível não dava sossego a pobrezinha. Quase na agonia ela num sussurro disse para a sua vovó: "Quero a minha lousa e o lápis. Quero anotar os insetos que matei para mandar para D. Georgeta". E quasi sufocada pela falta de ar escreveu com com letra tremula o que desejava. Entregando a lousa, num acesso mais forte de falta de ar, entrou em agonia tendo os olhos fixos num quadro de Nossa Senhora. Quem sabe se naquela hora ela pensava que no Ceu iria continuar a campanha contra os insetos nocivos tendo como companheiros os anjinhos?
E com isto ficou escrito mais uma página na história do Clube Agricola Dr. Raul de Paula das Escolas Reunidas de Santa Cruz do Escalvado.


A caçada

Nonho Camarão deliberou certa vez a ser caçador. Trabalhava a semana inteira no seu gabinete dentário e era preciso variar um pouco. Um belo dia ele chegou em casa, após um dia trabalhoso, e disse para a cara metade: "Pode preparar o farnel que amanhã vou a caçada. Garanto que trarei algum bicho: veado, paca, cotia ou capivara". A sua Exma. esposa poz-se a rir de sua prosopopéia, duvidando do sucesso da caçada. Na madrugada de domingo, ele pulou da cama esfregando os olhos, e foi em pessoa arriar o pangaré. Tudo pronto, tomou da espingarda, dependurou o farnel na cabeça do selim e engarupou no cavalo e partiu acompanhado do Bodoque - seu cachorrinho de estimação. Depois de ter andado um pedaço de chão, ele enveredou por um matagal, tendo o cuidado de amarrar o cavalo ao tronco de uma árvore. Penetrou no mato cerrado, indo o seu cachorrinho na frente farejando caça. Em dado momento o cãozinho deu sinal perto de uma moita. Nhonho percebendo que havia bicho por ali, mais que depressa ajeitou a espingarda ficando alerta. Eis que surge, sainda de uma moita, uma bela paca. Mais que depressa Nhonho deu com dedo no gatilho e... bum! e a paca estribuchou. Nhonho, todo afobado e glorioso, rindo a tôa, correu para averiguar se o bicho estava morto de verdade. Delirou de prazer e tratou de arranjar um cipó e amarrar a paca na garupa do pangaré. E lá se foi ele, aguentando um trote duro do cavalo, triunfante com o resultado da caçada. Entregou a D. Helena o bicho dizendo: "Eu não disse que traria alguma coisa para melhorar a boia! Trate de isto depressa que eu estou com fome". D. Helena delirou ao contemplar tão bonita paca. Mais que depressa foi prepará-la, pondo em jogo a sua ciência na arte culinária. E na hora do jantar o casal saboreou o delicioso petisco com invejável apetite.
Com este sucesso, Nhonho tomou gosto e com ansiedade esperou chgar outro domingo para repetir a façanha. Desta vez, porem, a caçada fui infrutífera. Ele embrenhou pelo mato, sempre seguido pelo cãozinho, mas nada de bicho. Vagueou metade do dia e voltou para a casa, trazendo uma quantidade incrível de carrapatinhos!
D. Helena ficou deseperada porque ganhou grande quantidade de carrapatos e seu tempo foi pouco para a coceira. Coitado do Nhonho! além da coceira teve que aguentar a descompustura da cara metade.
E com esta ele tomou a resolução de encerrar as caçadas.


Floriana

Mamãe tinha uma afilhada chamada Floriana. Seus pais eram: Sio Manoel Carioca e Sia Venancia.
Tendo sua mãe enlouquecido, seu pai pediu a Mamãe para tomar conta da garota pois ela queria ficar com a madrinha lá na Casa Grande. Ela já era uma menina de crescida, de uns 12 ou 13 anos, e já podia fazer alguma coisa. Mamãe recebeu a menina com um pouco de receio, mas teve pena pela circunstância dos pais. Deu-lhe como obrigação fazer a limpeza da casa e encher as vasilhas de água pois, naquela época não havia água encanada. Ela era uma menina ativa, porém levada da breca. Dava o que fazer a pobre da Mamãe. Ela era uma fujona de marca, por esta razão dava muita preocupação.
Certa vez passou por Santa Cruz uma Companhia de Circo. Floriana foi conosco a um espetáculo. Ficou deslumbrada com as cenas que assistiu, mormente com a cena de uma garota no trapézio. Floriana ficou tão impressionada que planejou tambem ser uma artista. Como não sabia arranjar um trapézio, resolveu o caso de outra forma. Aproveitou uma hora em que a Mamãe estava entretida costurando, e foi para o quarto que dava para o beco e achou que a janela fazia às vezes de trapézio. Trepou numa canastra que havia perto, assentou na janela, poz as pernas para o lado de fora e agarrou bem com as mãos no parapeito e soltou o corpo. Ficou balançando achando aquilo uma delícia! Quando estava no melhor da cena percebeu os passos de Mamãe. Como não havia mais tempo de voltar para o quarto, tomou uma resolução rápida. Com a vista mediu a altura, largou as mãos e .... bumba! caiu lá em baixo. Nossa casa era bem alta portanto a queda foi grande. Ao cair, Floriana fez um berreiro medonho e ficou estribuchando lá no chão. Mamãe, ouvindo os gritos, foi a janela e viu-a berrando e rolando no chão. Mais que depressa chamou a cozinheira e mandou-a acudi-la. Esta, com dificuldade, conseguiu carregá-la e ela gritando sempre, até que chegou ao meio da escada. Lá em cima estava o papai com a fisionomia carregada. Floriana, ao ve-lo, saltou dos braços da cozinhiera e correu pela escada acima indo se esconder no quarto de Ioió. Com o susto Mamãe não se lembrou das varadas que ela merecia... e papai voltou ainda carrancudo para o negócio.
Uma vez Floriana fugiu as altas horas da noite e foi se esconder debaixo da casa do Sr. Antonio Caixeiro. Mamãe ficou maluca procurando-a e incumbindo muita gente de procurá-la. Alguem viu-a na horta da casa do Sr. Antonio Caixeiro e mandou avisar a Mamãe. Floriana percebendo que estava sendo localizada, escondeu-se dentro de uma barrica até que revistassem toda a casa. Afinal os donas da casa convenceram-na para voltar lá para a nossa casa e foram levá-la, pedindo a Mamãe para perdoar aquela arte. No dia seguinte a endiabrada começou a criticar, imitando o dono da casa que era português, e remedando o resto do pessoal. Era desse jeito que Floriana agia.
Numa outra ocasião ela combinou com Maria Imbiguda (outra menina entregue a Mamãe) e à noite fugiram para o Lôbo. Elas foram encontradas na casa do Matias, pai da Maria Imbiguda. Sio Teodolindo - o emissário de papai - levou-as de novo e fez a entrega relatando os ocorridos. Naquele dia a palmatória trabalhou.
A última vez que Floriana fugiu ela já estava moça e Mamãe desistiu de procurá-la. A pobrezinha era um caso perdido.


Congadas, Boticudos e Meu Boi

Antigamente as festas Religiosas eram precedidas de algumas diversões que serviam para atrair o pessoal da roça. Cada festa tinha a sua brincadeira especial: Congadas, Boticudos e Meu Boi. Havia também algumas festas pomposas com com fogos de artifício que o vulgo denominava: Castelo.
A dança das Congadas era formada de duas turmas de homens, cuja vestimenta era a seguinte: calça e camisa brancas, saiote vermelho de uma turma e da outra azul. Fita larga a tiracolo e na cabeça um capacete que levava 3 espelhinhos. No centro do capacete um chumaço de fitas estreitas de diversas cores. Levavam réco-réco, chocalhos e pandeiros. e atráz do bando iam os tocadores de viola, sanfonas e pandeiros assim como caixas. Um dirigente, que era considerado o chefe, dava os sinais com um apito. Dançavam e cantavam pelas ruas seguidos por um punhado de homens e mulheres. A cantarola começava assim:
Ô dia a mim, dê o dia a mim.
Vamos todos festejar N. Sra. das Mercês.
Ai, que ela mesma a de ajudar.
e por aí a fora com variedades de versos e de músicas. A sanfona representava um bom papel pois segurava a toada. De vez em quando o chefe dava um apito, o grupo parava e havia um diálogo entre os dois chefes, que eram adversários, e eles terminavam cruzando as espadas em sinal de paz e a dança continuava.
Os festeiros ofereciam aos Congados um almoço puxado a leitôa... e era nesta hora que o bando descansava um pouco. Depois, em filas, seguiam para a Matriz para acompanherem a Procissão. Carregavam o andor do Santo e conservavam em filas durante todo o percurso. Após a Procissão as danças continuavam até tarde da noite e o povo da roça sempre acompanhando.

Os Boticudos dançavam sempre nas Festas do Divino Espirito Santo quando não havia Castelo. Vestiam-se da seguinte forma: camisa de meia branca toda rabiscada de tinta de diversas cores. Calça branca curta e saiote vermelho. Punham na cabeça um cocar, ou coisa que o valha, todo cheio de penas coloridas. Levavam arco e flecha. Quando cantavam as flechas marcavam o compasso direitinho. Eram duas turmas, uma de cada lado. Havia também dois chefes: Bernardino e Badá. Este trazia dependurado no ombro um macaco empalhado. Por fora das filas ficavam os homens da sanfona, caixa, pandeiros e mais instrumentos de fazer barulho. Era assim que cantavam:
Boticudo lá na mata, ô lê lê
Não tem conta com ninguem, ô lê lê.
B-a-ba, B-e-be, B-i-bi, ô lê lê
Ora vamos p'ra Pitanguí, ô lê lê.
Minha mãe é uma onça, ô lê lê
Meu pai é gato do mato, ô lê lê.
e mais uma versalhada que já não me recordo. Havia um trançado de fitas muito interessante. Fincavam uma vara no meio da rua a qual estavam presas um punhado de fita de todas as cores. A um sinal do chefe os Boticudos aproximavam-se e cada um pegava na ponta de cada fita. Depois abriam bem a roda e, ao sinal do chefe, a sanfona começava a tocar, a turma cantava e dançava ao redor do mastro e as fitas iam trançando. Estando todas enroladas no pau, a um sinal, paravam e voltavam para o outro lado e começavam a cantar e dançar de novo desenrolando as fitas. Era este o número mais interessante dos Boticudos. Na Procissão faziam o mesmo que os Congados. Terminado o ato religioso, saiam para o adro da Igreja e a dança continuava. O povo delirava com aquele espetáculo!

Outra coisa engraçada era o Boi que surgia depois do último dia da Novena de Nossa Senhora das Mercês, acompanhado por um povaréu. O boi era arranjado da seguinte forma: uma armação de balaio grande na qual era amarrada uma caveira de boi com os chifres. Era coberto com uma colcha sarapintada. No centro do boi entrava um homem que segurava bem o balaio e saia pulando, investindo no povo querendo chifrar a torto e a direito. Na frente do boi ia um homem fantasiado com saiote e fitas tendo nas mãos uma guiada com guizos na ponta e ia pelas ruas a gritar musicadamente: "Meu boi é laranjo." e o povo gritava: "Ei boi! Ora vasto meu boi, ei boi. Arremete o festeiro, ei boi" e por aí a fora. De vez em quando o boi investia no povo para dar chifrada. Era uma correria louca e muita risada. Era tombo que não acabava mais. O trajeto era sempre o mesmo: das Mercês ao Patrimonio. E nesta barulhada levava a noite toda, mas compensava porque o povo ia para a casa contente.

Confesso que sinto bastante saudade ao recordar o tempo despreocupado de minha meninice.


Folia e Encomendação das Almas

Duas coisas levaram tempo para desaparecer de Santa Cruz do Escalvado: Folia e Encomendação das Almas.
A Folia tinha como finalidade arranjar esmola para as Festas Religiosas programadas. Os promotores das Folias eram: Sio José Estevãoe Zé Aleixo. Eram eles que carregavam a bandeirinha com a estampa do Santo. O grupo era composto de homens, mulheres e crianças que cantavam com muita unção. Nunca passavam sem sanfona, viola, caixa e pandeiro. Havia também uma pessoa encarregada da salva para receber as esmolas. O canto era de acordo com quem dava a esmola: crianças, velhos, moças e rapazes. A toada era sempre a mesma e sempre bem entoada e no compasso. As mulheres e as crianças cantavam fininho e os homens em voz grossa. Corriam todas as casas do arraial e todo o mundo dava esmola, alguns só para escutarem a cantarola. Para cada doador havia um verso a calhar. Era assim:
Deus lhe pague a bela esmola
Dada pela mão da criança
No reino do Céo lhe vejo
Toda cercada de anjo
Cercada de resplendor.
E por aí a fora. A música era monótona toda a vida...

Outra coisa engraçada era a Encomendação das Almas que faziam toda sexta feira da Quaresma. Formavam um grupo de homens e mulheres envoltos em lençois. Cantavam apenas nas casa onde havia dependurada uma cruz. Lá ajoelhavam e cantavam o seguinte com solo e coro:
Acorda quem está dormindo
Rezai um Padre Nosso
Padre Nosso, Ave Maria
P'ras Almas do Purgatório
A música era interessante e as vozes bem entoadas. Dava gosto ouvir. Aquilo tudo me punha apavorada porque diziam que as Almas todas saiam do purgatório para acompanhar o grupo. Só Deus sabe do meu pavor nas Sextas feiras da Quaresma. Eu não tinha coragem de ver através da vidraça...


Cena

A medida que vou me recordando das ocorrencias, vou escrevendo, de sorte que este caderno é uma miscelânea.
O que vou relatar neste capítulo não presenciei. Foi o meu cunhado Arthur quem nos contou.
Antigamente, quando uma Companhia de Circo chegava numa Cidade ou Arraial era um sucesso! Ninguem queria perder o Circo e nem a passeata do Palhaço pelas ruas, com um bando de meninos a gritar: "Hoje tem espetáculo?" e a garotada respondia: "Tem sim senhor!" e o palhaço continuava cantoralando pelas ruas afora.
Ha muitos anos, lá em Mariana - uma das mais antigas cidades de Minas, surgiu em certa ocasião uma Companhia de circo com muitos artistas, moças e rapazes, cavalos amestrados, muitos palhaços e mais alguma coisa. Foi um sucesso aquela novidade! A fama do circo chegou atá a Fazenda (não me recordo o nome) onde residiam alguns parentes de Arthur meu cunhado. Tanto o pessoal da sala como da cozinha ficou assanhado para assistir os espetáculos. Entre os empregados da fazenda havia um que conhecí e chamava-se: Antonio de Cena. Ele nunca havia assistido um espetáculo e estava ansioso indagando, a torto e a direito, como era aquilo e louco para chegar o dia da estréia. Quando foi anunciado o dia, lá se foi o bando de patrões e empregados em demanda da cidade. Compraram as "entradas" e foram esperar na porta do circo. Lá havia gente que não acabava mais. A Banda de música tocava para entreter o povo e a sofreguidão imperava. Até que enfim foi dado o sinal para a entrada dos espectadores e todos entraram num atropelo medonho.
O nosso Antonio de Sena arranjou um lugarzinho bom lá no alto de uma bancada. De lá podia apreciar tudo muito bem. A sinêta deu sinal para iniciar o espetáculo. O povo fremia de entusiasmo! A entrada dos palhaços no picadeiro foi um sucesso! Cada qual mais exótico e a risada foi geral pois o Zé povinho é maluco por palhaçadas. Em seguida entrou um artista que engolia fôgo, espada, caco de vidro, etc. Depois houve corrida de cavalos com artistas bem vestidos que trabalharam muito bem e receberam muitos aplausos. Terminado este número, o Diretor do Circo entrou de braço com uma moça muito bem trajada, com calção e corpete bordados de lantejoulas. Ela iria trabalhar no trapezio. Ela foi recebida com muitas palmas e para todos enviou beijos. Foi uma sensação! O diretor deu um sinal, os músicos começaram a executar uma valsa lenta, e a moça foi subindo por uma corda até alcançar o trapezio. E principiou a trabalhar. Quando terminava um número o povo delirava e gritava: "Cena". Lá da bancada aonde estava o Antonio de Cena, este, ao ouvir gritar "cena" respondia espantado: "Inhô" e olhava por todos os lados a procura de quem lhe chamava. E assim decorreram todas as Cenas com a ovação do povo e o pobre homem a responder: "Inhô". Ao terminar o espetáculo, após a pantomima, o nosso herói desconcertado, olhando para todos os lados, até encontrar o Patrão. E foi logo indagando quem o estava chamando só gritando "Cena". O patrão riu um bocado e depois explicou-lhe que, quando o povo gritava "Cena", era pedindo para repetir o número, portanto ninguem estava mexendo com ele. Só assim o pobre homem teve sossego e foi mais tranquilo para a Fazenda, mas jurou que nunca mais iria ao Circo para não levar tanto susto!


Inexplicável

O que vou relatar deu-se comigo, não me recordo em que ano, mas o fato impressionou-me bastante.
Era nosso Vigário em Santa Cruz um italiano de nome P. Antonio Preti. Como além de cantoras ajudávamos muito na Igreja, arranjando altares, olhando a roupa branca para consertar ou mandar para a lavadeira, o fato é que o Vigário tornou-se nosso amigo e frequentava muito a nossa casa. Às vezes nós íamos em sua residência no intuito de dar "umas vistas d'olhos" na sua biblioteca.
Indo lá uma vez e vendo os livros destaquei um intitulado: Vida de D. Viçoso, bispo que morreu com fama de santo. Retirei o volume e levei-o para casa para conhecer os fatos da vida de tão virtuoso Prelado. Antes de dormir eu gostava de ler alguma coisa. Não havendo naquela época luz elétrica em minha terra, eu lia a luz de vela. Arranjei pois um pedaço de vela de cêra e colei-a em cima de uma caixa de fósforos cheia, a guisa de castiçal, e coloquei-a em cima do colchão, bem perto do travesseiro, para que eu pudesse enxergar melhor. Deitada comecei a ler e, quanto mais lia, mais edificada ficava com as virtudes do Santo Bispo. Em uma das noites seguinte eu lia certos trechos edificantes do humilde servo de Deuas, e fui colhida pelo sono, estando a vela acesa e bem perto do meu travesseiro. Quando acordei pela manhã, o livro estava entreaberto a meu lado e a vela tinha sido consumida e a caixa de fósforos estava carbonizada no lugar onde estava pregada a vela. Dentro da caixinha os fósforos estavam intactos, vencendo o calor da chama da vela e o queimar da tampa da caixa! Meu coração começou a bater descompassadamente e eu tratei de rezar agradecendo a Deus e a intervenção do Santo Bispo por não ter incendiado o colchão e me queimado toda.
Foi um verdadeiro milagre que atribuo a intervenção do Santo Bispo. Deixei escrito este fato no livro que eu estava lendo. Por muito tempo guardei a caixa de fósforos como prova do que acontecera. Com as diversas mudanças que fizemos ela desapareceu, ficando apenas a recordação do fato.


XXX  Fim da Parte II  XXX