Proezas do rádio
Georgeta Marinho Sette Câmara (PY4IP)
A história do começo de tudo, contada por quem participou intimamente dela.
Relato dos primeiros encontros entre Eurico e Auxiliadora até o noivado em outubro de 1942 em Niterói.
(Transcrito do original por Marcos Rodrigues de Barcelos) Guaratinguetá, outubro de 2003
2ª Edição – novembro de 2003
Georgeta Marinho Sette Câmara Nasceu em Santa Cruz do Escalvado a 31 de Dezembro de 1883 e faleceu a 3 de julho de 1972 em Mateus Leme. Ao ser criada em Ponte Nova a Escola Normal N. Sra. Auxiliadora, foi uma das primeiras alunas matriculadas neste estabelecimento. Seus pendores literários levaram-na ao domínio da prosa e da poesia tendo várias obras publicadas nos jornais da época com o pseudônimo de Camélia Branca. De sólida formação religiosa, dedicou-se por quase toda a vida à catequese infantil e, quando necessário, também de adultos, tendo fundado a associação das Zeladoras do SS. Sacramento, aprovada por D. Silvério Gomes Pimenta então Arcebispo de Mariana e mais tarde por seu sucessor D. Helvécio Gomes de Oliveira. Com personalidade dinâmica procurava elevar o nível cultural de seus conterrâneos, organizando grupos teatrais, tertúlias literárias, comemorações cívicas, inclusive trabalhando entusiasticamente na campanha civilista pela candidatura de Rui Barbosa, quando ainda a participação feminina na política era tabu. Ingressando no magistério em 1928, movimentou e dinamizou o ensino e com o apoio do Cel. Cantídio Drummond, prefeito de Ponte Nova, as escolas, então isoladas, foram reunidas, sendo ela nomeada Diretora, cargo que ocupou até aposentar-se. Nas férias, procurava ir aos centros maiores como Belo Horizonte e Rio para atualizar-se nos métodos de ensino e adaptá-los às condições do lugarejo do interior onde trabalhava e assim foi pioneira da merenda escolar, dos clubes Agrícolas, dos jornais infantis, - pois o que fundara nas Escolas Reunidas foi premiado na 1ª exposição de jornais escolares do Brasil. Marcou época também a Semana Ruralista realizada em Ponte Nova em 1932 com a presença de personalidades ilustres para conferências e debates que movimentou toda a população do município, inclusive com Exposição de produtos agrícolas e artesanais da região. O Professor Souza Araújo do Instituto Oswaldo Cruz, o Dr. Belo Lisboa, Diretor da Universidade de Viçosa, Dr. Teixeira de Freitas, do Instituto Histórico, Dr. Alcides Bezerra, Dr. Raul de Paula e outros empolgavam a grande assistência, debatendo vários assuntos da atualidade. Tudo isso, trabalho de Georgeta Sette, apoiada pelas autoridades Municipais. Em 15 de agosto de 1940 recebeu o prefixo de PY4IP, como sócia da Liga de Amadores Brasileiros de Rádio Emissão, LABRE e na faixa dos 80 metros como na de 40 metros era conhecida como a dindinha de todos os novos radioamadores, tendo, com sua prosa agradável e alegria contagiante, feito amizades por todo o Brasil e também com colegas do exterior. Era membro ativo da Rodada do Itacolomy onde também se encontravam PY4HY, Dr. José Sette Câmara, PY4FR, Dr. José Reis Cotta, PY4AG, Cônego Raimundo Trindade, PY4CC Dr. Feliciano Baêta da Costa, PY4LQ Matilde Baêta da Costa, - que a acompanhou até o QRT[1] definitivo – e muitos outros, que seria longo enumerar. Alegre, prestativa, amiga de todos, dedicada ao extremo, sua vida foi testemunho autêntico de fé, caridade e patriotismo. Seus irmãos, cunhados, sobrinhos e demais parentes só podem dizer dela: Soube viver, semear e fazer frutificar o bem.
Nota: Texto da lavra de Maria de Barros Pinheiro (Nhanhá – Mariquinha), produzido a pedido de Maria Auxiliadora Sette Pinheiro, provavelmente nos anos 80, cujo original encontra-se no acervo da família Rodrigues de Barcelos.
Índice
Rodada `A vida começa aos 60 anos.`
Á guisa de prólogo.
Eurico e Auxiliadora
Escrevi esta historia, a qual dei o titulo de “Proezas do rádio”, somente para Vocês. Não me passou pela idéia a pretensão de fazer literatura, e nem tão pouco escrevê-la em bom português, porque a minha aspiração andou sempre distanciada dos literatos, e, quem foi péssima estudante, anda sempre em demanda com D. Gramática e saí às mais das vezes perdendo. Por conseguinte, ela foi toda escrita em linguagem chã e está salpicadinha de erros. Espero, pois, que Vocês passarão por cima de tudo, para procurar somente a essência – a pura essência – que é o principal. Procurei escrever a nossa história, grande na extensão do afeto, porém resumida em poucos capítulos. Este caderno contando a história “Proezas do rádio” é para ser guardado como lembrança de uns dias muito felizes. No decorrer dos anos, quando o Tempo quiser passar a esponja do Esquecimento neste passado longínquo, Vocês, meus filhos, sempre unidinhos, carinhosos, correrão os olhos por sobre estas paginas, onde encontrarão em cada palavra um pedacinho do meu coração. E a PY4IP - a dindinha muito amiga – já bem distante deste mundo de ilusões, continuará vivendo na lembrança de Vocês. E quando lerem, ou aliás, todas as vezes que lerem as “Proezas do rádio”, colherão muitas saudades no canteiro do Passado. E Você, meu Eurico querido, irá perdoar-me se fui exagerada em alguns capítulos. Não consegui sofrear a minha imaginação – especialmente quando escrevi o capitulo : Cartão de PY4IP a PY4JG. Ao terminar, ainda tenho uma coisa para dizer : sempre que Vocês percorrerem estas linhas, receberão uma infinidade de beijos carinhosos e saudades da
Dindinha
Dezembro de 1942
Dodoge em seu “Studio”
Primeiro comunicado
A lua em toda a sua plenitude deixava os seus raios indiscretos penetrarem pelas frestas da janela do Studio[2] de PY4IP. Maria Auxiliadora, moreninha encantadora, na apoteose de suas 18 primaveras, portadora de encantos capazes de arrebatar Cupido, estava poeticamente sentada no peitoril de uma janela que dava para o quintal, embevecida a contemplar São Jorge cavalgando o seu fogoso ginete, bem dentro da lua cheia. Enlevada por aquele luar, subia aos páramos[3] azulados dos sonhos e das quimeras... Pertinho do receptor, PY4IP sintonizava a faixa de 80 metros a cata de um novo comunicado com o seu colega muito querido : PY4IW. Encontrando silenciosa a freqüência deste, correu a faixa e percebeu que alguém chamava insistentemente pelo mesmo colega. Apanhou o prefixo e resolveu a auxilia-lo. Ligou o transmissor e começou a chamar insistentemente por PY4IW, pedindo-o para atender a PY4JG de Uberaba que talvez tivesse grande precisão de falar para Belo Horizonte. Depois de um chamado longo, desligou o aparelho e foi de novo correr a faixa. Encontrou PY4JG pedindo um “compreendido” para um agradecimento. PY4IP que andava sequinha por um “bate papos”, não se fez de rogada : atendeu logo ao seu colega de Uberaba. Com a palavra, PY4JG desmanchou-se em agradecimentos pelo auxilio prestado pela colega, dirigindo-lhe meia dúzia de amabilidades. Anunciou que estava registrando o 1º comunicado, passando novamente a palavra para S. Cruz do Escalvado. PY4IP contentíssima com o ensejo de marcar mais um 1º comunicado, percebendo no gentil colega uma grande inteligência e uma conquista de amizade, desmanchou-se em gentilezas com grande desperdício de adjetivos. Cometeu até a grande heresia de dizer: - A sua estação está chegando por aqui maravilhosamente! - quando era escutada lá muito ao longe... precisando a gente meter a cabeça e os ouvidos dentro do alto falante para perceber alguma cousa... Em meio do “lero-lero[4]”, ela saiu-se com esta: - Você sabe, colega, que tenho uma secretária? Sou gente de luxo e posso afiançar-lhe que não sou “pouca porcaria”. Vou passar o microfone para ela lhe cumprimentar. Com a palavra Maria Auxiliadora. O que ela disse não me recordo. Alguma frase banal que a gente atira pelo ar ao ensejo do 1º comunicado. PY4JG de novo com a palavra, voltou somente para a secretária, esquecendo-se até de que estava em comunicado com PY4IP. Com um entusiasmo fora do comum, entrou arrebanhando os raios de prata do luar, o manso sussurrar da brisa, a Fada da varinha de condão e tanta cousinha bonita que a minha memória não guardou. Ao referir-se a sua voz, fê-lo com tanta entusiasmo, com tanto espirito, comparando-a ao suave gorjeio de um canarinho. E foi assim que Auxiliadora granjeou o apelido de Canarinho da Flor do Ipê. Isto se deu no dia 13 de fevereiro de 1941 às 19,30, conforme está no registro de comunicados de PY4IP. Rádio Cartão de PY4JG – Eurico para Maria Auxiliadora confirmando o 1º comunicado.
Rodada `A vida começa aos 60 anos.`
Quando eu era menina, escutei pela primeira vez, pronunciado por uma velha espirituosa o seguinte dito popular : “Comer e coçar, está no principiar.” Nunca mais saiu-me da lembrança esta frase, e, sempre que faço as minhas observações na seqüência dos fatos, ela me vem a baila e recordo-me do que ouvi na minha meninice. Nesta vida tudo é assim e o rádio não pode fazer exceção a regra. Depois de um 1º comunicado, a gente tem sempre vontade de falar de novo com o colega, portanto, não se perde nada. PY4JG, PY4IW e PY4IP encontraram-se pela primeira vez em rodada e firmaram um pacto de reunirem-se diariamente em rodada em hora determinada, para discutirem... banalidades, já que as leis do rádio não permitiam outros assuntos. Religiosamente as 20 horas os 3 estavam à postos esperando o chamado que as mais das vezes partia de PY4IP a mais assanhada da rodada. E o lero-lero em contínuo crescente prosseguia, até que PY4JG, alegando motivo justo, pedia permissão aos colegas para deixar o rádio, combinando antes novo encontro para o dia imediato. PY4IP, velha maliciosa, arquitetou logo um romancezinho para o seu jovem colega : encontro amoroso na Praça ou nalgum recanto mal iluminado... Mais tarde, veio saber que a retirada em hora certa do rapazinho era motivada pela imposição do dono da pensão, que gostava de ouvir o noticiário de Berlim sobre a guerra, e era interferido pelo transmissor de PY4JG. Assim, enquanto o germanofilo ouvia rádio, PY4JG emudecia para não ser “despachado” da pensão, senão... era uma vez o radioamadorismo em Uberaba. PY4IP, já entrada em anos, receava alguma complicação amorosa entre os seus muitos colegas solteiros e disponíveis. Com o seu modo melífluo de falar receava que Cupido fizesse alguma travessura. Para evitar equívocos, tinha o prazer de dizer em seus comunicados : “Olha, colega, é preciso que Você saiba que já sou super madura. Se eu fosse cristalizada[5], já poderia ser vovó. Note isto por aí, e volte.” Quase sempre o colega voltava glosando pilhericamente a coragem da solteirona. PY4JG rapaz de muito espirito e fulgurante inteligência, não ficou isento deste aviso – embora já se fizesse notar os seus balangandãs pelo Canarinho da Flor do Ipê... Certa vez foi posto em discussão o nome para a Rodada. Como todos se diziam velhos, por proposta do Jovem Galante – alcunha de PY4JG dada por PY4IW – resolveram adotar o seguinte : Rodada da “A vida começa aos 60 anos” – nome que prevaleceu até o brusco QRT de PY4JG. E hoje, depois de decorridos tantos meses, com que saudades vejo bailar na minha imaginação a recordação daquelas formidáveis rodadas, onde sempre triunfava na verve o queridíssimo PY4JG.
Carnaval no rádio
Era num domingo de carnaval. O relógio batia compassadamente 8 badaladas no silencioso studio da PY4IP. Não chovia naquela noite. Nos grandes centros a folia, por certo, era louca, festejando Momo. Em Escalvado, apenas a folhinha marcava em caracteres vermelhos : Carnaval. Nem um rumor de cordão, nem uma zoeira de Zé Pereira para quebrar a monotonia da pacata vila. No rádio, PY4IP sintonizava a faixa a procura de alguém que quisesse com ela rasgar a fantasia.... Num dado momento, ouviu um chamado geral de Uberaba e reconheceu a voz de PY4JG. Sem trepidar atende ao chamado e entra logo em lero-lero com seu colega. PY4JG volta cantando “Uma valsa” e termina com a sua risadinha interessante. O Jovem Galante estava naquele dia com sua verve “fosforescente” e entrou, inoculando a sua alegria na sua colega que para isto sentia bastante predisposição. Conversa, puxa conversa, e o “bate papos” escorrega para o terreno amoroso, numa bruta farra carnavalesca. PY4JG começa por recitar uma poesia de amor, pondo na voz um mundo de ternura... Depois, uma frase adocicada e em seguida, uma formidável declaração de amor. PY4IP procurava responder ao colega, ora em verso, ora em prosa, tão “chinfrim” porque não tinha treino. Seus ouvidos não estavam habituados àquelas frases melosas. Ela não podia fazer competição com o Jovem Galante, rapaz sabido e experimentado, porque na roça a coisa é assim : a gente escuta, torce os dedos, abaixa a cabeça, fica vermelha e ri amarelo, dando assim demonstração que está gostando. No rádio, ela não podia fazer deste jeito, pois, ainda não havia televisão, portanto ia respondendo como podia. Depois de transbordante declaração, ficaram noivos. Ao lado, o Canarinho gorjeava numa risadinha sonora, apreciando aquele noivado carnavalesco. ................................. De acordo com o combinado de véspera, encontraram-se de novo na segunda feira gorda. Vinte horas. PY4IP aguardava ansiosa o chamado de Uberaba. Pontual como um funcionário de Prefeitura, PY4JG chegou com 10 minutos de atraso. Como no dia anterior, cantou inteirinhazinha “Uma valsa” e atirou na colega uma catadupa de frases lindas. Emocionada, esta respondeu num agradecimento sem contudo retribuir as belas frases de amor. Formalizando-se, falou : - Escuta, meu gentil colega, vou lhe dizer uma cousa muito seria: a noite é boa conselheira, a ela contei as ocorrências de ontem, e ela segredou-me muita cousa sensata sabe? em vista disto resolvi hoje assumir outra atitude, desmanchando o nosso noivado. Devolvo-lhe a palavra, meu Jovem Galante. Está o dito, por não dito, entendeu? - Ah! Ingrata! foram as palavras de PY4JG que censurou acerbamente o procedimento incorreto da sua eleita. Depois de longos queixumes, disse-lhe : - Já que Você me devolveu a palavra, devolva-me também aquele anel de brilhantes que lhe dei como presente de noivado... Voltando com a palavra, PY4IP falou toda maneirosa : - Meu negro, não tenho pendor para o matrimônio, e para não traze-lo iludido resolvi cair fora. Quanto ao anel, Você tenha a paciência, benzinho, não posso devolver, conservá-lo-ei como preciosa lembrança do nosso efêmero noivado. Fica Você sabendo, que, com este a minha coleção de anel conta 25. Muito agradecida, meu ex-noivo. - Ladra! – disse o Jovem Galante com indignação – Com esta lábia toda, você anda segurando os iniciantes, somente para fazer coleção de anéis. Ah bandida! Se eu adivinhasse... E assim terminou a brincadeira. Ao despedir-se atirou para o Canarinho uma braçada de amabilidades e disse que ainda iria ao Clube conduzir ao baile as pequenas da Pensão. E foi este o Carnaval de PY4IP com o Canarinho e PY4JG em 1941.
Aniversário3 de Abril de 1941 A Rodada “A vida começa aos 60 anos”, estava prevenida para reunir no dia 3 de Abril, - data natalícia de PY4JG. Devia estar na “rodada” a mãe do aniversariante que falaria do transmissor de PY4ID em Juiz de Fora. O Jovem Galante queria ter o prazer de apresentar a sua mãezinha querida aos colegas e amigos, portanto desejava a presença destes. No horário combinado, estavam à postos os componentes da rodada. Articulada esta, o Jovem Galante deu inicio a transmissão dirigindo uma saudação aos companheiros. Depois, comovidamente dirigiu palavras carinhosas à sua progenitora no studio de PY4ID. Mandou-lhe, com as suas palavras de afeto, uma revoada de beijos. Deixava transparecer a sua imensa alegria e a ânsia de ouvir a voz materna. Pedindo desculpas aos colegas passou logo a palavra para PY4ID. Este, fez uma saudação em regra ao aniversariante, cumprimentou aos colegas e passou o microfone para Nair que principiou assim : - Deus te abençoe, meu filho. – seguindo-se uma multidão de palavras carinhosas, de bons desejos.. uma porção de cousas lindas que só as Mães sabem dizer. Quanta saudade! quanto pesar por não poder estar ao lado do filho querido numa data tão festiva! Era a 1º vez que Nair falava ao microfone e no entanto, não sentiu aquele caroço que sempre atravessa a garganta dos neófitos, falou como gente grande! É que falava naquele momento um grande amor materno. Logo Enquanto PY4IW falava, PY4IP confabulava com sua Secretária: - Ih! menina. Precisamos puxar pelo talento e falar bonito para não sermos amarrotadas pelo Alvaro. Prepare o seu improviso, que o meu já está engatilhado. Existia entre os seus alfarrábios um punhado de versos feitos quando D. João VI estava mamando... e entre eles uns próprios para aniversário. Não era difícil uma modificação e o farol seria batatal, como dizia o PY4IW. Dito e feito. Quando chegou a sua vez, pespegou no colega os seguintes versos:
Esta data é gloriosa
Para muitos corações! Eu também sou venturosa Por mandar-te neste dia, Cheia de muita alegria, Minhas felicitações! Peço a Deus, lá nas alturas, P’ra de dar felicidades Muitos anos de venturas Áureo porvir entre sonhos, E dias sempre risonhos Sempre cheios de amizades! Este meu estro é fraquinho Não me dá inspiração. Eis porque, meu amiguinho, Em versos de pés quebrados De abraços bem apertados Te mando boa porção! Após os versos, um punhado de bons desejos e passou o microfone para a Secretária. Com a graça de sempre o Canarinho disse uma meia dúzia de cousinhas bonitas na singeleza de suas expressões. Isto por certo arrebatou mais o Jovem Galante do que a versalhada de PY4IP. Se já funcionasse a televisão veríamos a fisionomia dele toda sorridente quando ouvia os cumprimentos da moreninha do Escalvado. A mãe da Secretária presente no studio, parcimoniosa no falar, cumprimentou com muito afeto ao Jovem Galante augurando-lhe um porvir risonho. E a rodada continuou até quase meia noite e ninguém percebia o correr das horas. Nair voltou a falar com os amigos de seu filho para agradecer o momento feliz que lhe foi prodigalizado por Maninho, tão distinto, e pela cordialidade de todos. E a 4IP, sua Secretária e a mãe desta receberam maior quinhão de palavras afáveis. - prenúncio de uma grande amizade. E a data 3 de Abril naquele comunicado ficou indelevelmente gravada na memória dos componentes da rodada “A vida começa aos 60 anos”.
A receita
- Canarinho, palavra de honra que hoje, eu não faço nem um comunicado, porque estou com a garganta em pandarecos – assim dizia PY4IP à sua Secretária. - Deveras, Dindinha? Não creio. Quantas vezes a Senhora tem feito destes protestos?!... - Não, menina, agora falo sério mesmo. Hoje vou só corujar, pois, sinto dificuldade para falar. - Vamos ver! – disse o Canarinho com ar duvidoso. Ligando o receptor PY4IP principiou a correr as faixas enquanto a sua Secretária lia um romancezinho. Começou correndo todas as faixas: 20 ms, 40 e parando mais em 80 ms – a faixa do “barulho”. Que vontade de bater um papo! Quanta mortificação! Mas... queria resistir. Num dado momento ouviu um chamado geral lá da terra do Indu-Brasil, da cidade plantada entre 7 colunas verdejantes – a Princesa do Triângulo Mineiro, - e não resistiu. Ligou o transmissor. A Secretária interrompeu a leitura ao perceber o movimento da 4IP e disse: - Dindinha, o que vai fazer? E a sua palavra, não vale de nada? - Olha, menina, é só um cambito para matar saudades. Você vai ver. E sem mais preâmbulos contestou o chamado de PY4JG. E o lero-lero costumeiro foi entabulado e a 4IP falava com dificuldade, por causa do enguiço das cordas vocais. Obrigada a falar pouco, passou o microfone para o Canarinho que iria salvar a situação. O Canarinho depois de afáveis cumprimentos disse: - Você não imagina, Eurico, como a Dindinha é imprudente! Não pode quase falar e anda teimosa no rádio a fazer comunicados. Já estou cansada de lhe dar conselhos. Passe nela uns pitos, ouviu? Com a palavra, PY4JG reportou o cambio da colega e depois de dizer um punhado de palavras adocicadas ao Canarinho, disse: - Você tem razão, Canarinho, estou notando que a sua Dindinha está falando com dificuldade. Olha 4IP, Você precisa criar juízo e tomar muito cuidado. Para a sua garganta, eu tenho uma ótima receita. Canarinho tome lápis e papel e preste bem atenção para não perder a dosagem. Pronto? Naquela hora PY4IP e o Canarinho providenciaram para não perder nem uma virgula da receita. - Preste bem atenção.
Mistura-se tudo ao fogo e deixa esfriar. A noite, pegar nesta pasta, espalha no pescoço, faça uma fricção leve com uma flanela, até sentir calor. Se não curar, dá um brilho extraordinário! E deu uma risadinha gostosa. Canarinho, que levava o caso muito á sério, tomando nota de tudo, ficou “buzina” com o final da receita e mais com a risadinha do Jovem Galante. Afinal as duas deram boas risadas com a pilhéria do menino travesso lá de Uberaba.
24 de Maio
Cedinho, afrontando um friozinho cacete, PY4IP saltou da cama afobadamente. Era dia de festa das ex-alunas do seu Colégio. Ela iria incorporar-se ao bando de ex-alunas para fazer a Páscoa como é de praxe todos os anos na Escola Normal Nossa Senhora Auxiliadora. A capela estava lindamente ornamentada. A Virgem Auxiliadora lá no seu nicho, toda iluminada, parecia sorrir anunciando alguma cousa boa para aquele dia. Houve Missa cantada pelo harmonioso coro das internas. Esteve belíssima toda a cerimonia. Finda esta, foi servido pelas Irmãs, no locutório, delicioso chocolate. As mesas estavam lindamente floridas e guarnecidas de deliciosos bolos e sequílhos. Em cada lugar estava colocada uma lembrança: uma pequena estampa de Nossa Senhora Auxiliadora. Terminado o ligeiro repasto, nada mais tinham a fazer, e as ex-alunas partiram em bando, tomando de “assalto” o ônibus, rumo à cidade. PY4IP ao descer na Avenida Caetano Marinho, encontrou sua sobrinha Lêda, que foi ao seu encontro para lhe dar uma alvissareira noticia. - Sabe quem está aqui na cidade? É o PY4JG. PY4IP alvoroçada perguntou: - É verdade mesmo? Onde está ele? Não me dê trote por favor menina. Então ela lhe contou que ele estava hospedado no Hotel Gloria e que havia telefonado para PY4FR, seu pai, e este havia ido ao hotel procurá-lo, trazendo-o para a sua casa, depois de terem percorrido, ambos, os principais recantos da cidade. PY4IP já não escutava mais nada e desejava naquela hora possuir azas para voar depressa ate a residência do seu cunhado, afim de consumar o seu grande anseio: conhecer pessoalmente e abraçar o seu querido colega de Uberaba. Nada mais a deteve na Avenida e não sei de que maneira ela galgou os degraus da escada da casa de PY4FR. Correu logo para o seu amigo sem necessitar de apresentação, e, estreitou-o demoradamente contra o peito, como se quisesse, com aquele abraço, apertar ainda mais os laços daquela grande amizade! Não se separou do seu amigo o dia todo, ate que, bem tarde da noite, a prudência aconselhou-a a despedir-se. E, ao deitar-se, antes de ser dominada pelo sono, deixou que pela sua imaginação perpassassem as ocorrências daquele dia como se fora uma linda e colorida fita cinematográfica. Deu graças a Deus e suplicou à Virgem de D. Bosco para proteger sempre aquela amizade, iniciada num dia tão ditoso e tão significativo e que talvez fosse para o seu amigo o marco da felicidade. Guardou para ele a lembrança trazida do Colégio escrevendo no verso uma dedicatória para ficar gravada a recordação do dia 24 de Maio de 1942.
Santinho comemorativo do dia 24 de maio de 1942 ofertado por Dodoge a Eurico no dia em que se conheceram. Dodoge, Eurico e Auxiliadora - Santa Cruz do Escalvado - MAI42 Atentem para o detalhe da meia do “Seu Barcellos” De Ponte Nova a Escalvado.
Que noite maravilhosa foi aquela! PY4IP sonhou a noite toda com o seu colega. A surpresa e a alegria que lhe proporcionou o seu amigo, fez com que ela se esquecesse da decepção sofrida com o “bolo” dado pelo seu amigo PY4MB assú – que havia lhe prometido uma visita justamente no dia 24. Esperou-o na gare da Central até tarde da noite e afinal, só no dia seguinte, por um telegrama, teve conhecimento do fracasso de sua vinda. Ate a hora do ônibus PY4JG passeou com a sua colega. Foi a Prefeitura, a Biblioteca, a redação de um Jornal, fez algumas visitas e almoçou na residência do casal Mendes Lins. As 15 horas, tomaram o ônibus rumo a Santa Cruz do Escalvado. A viagem correu otimamente, especialmente para PY4IP, que, ao lado do seu querido amigo não sentiu nem os abalos do carro e nem tão pouco percebeu o correr das horas. Durante a viagem, combinou com PY4JG para dar um “trote” na sua Secretária – ela o apresentaria como se fosse o PY4MB mirim. À entrada da vila avistaram o Canarinho que descia a ladeira que dá acesso a Igreja Matriz. PY4IP fez para ela um aceno, dizendo-lhe: - Zequinha não veio, porem, mandou Bruno em seu lugar. Ela acelerou os passos e quando o ônibus parou, estava juntinho dele. PY4IP desceu e depois de abraçar e beijar a sua Secretária, disse-lhe - Canarinho, tenho o grande prazer de lhe apresentar o nosso amigo Bruno. Ela encarou-o... sorriu e disse numa exclamação: - Eurico! E sem cerimonia nenhuma, num gesto todo expontâneo, deu-lhe um abraço. O Jovem Galante sem esperar por aquela agradável surpresa sentiu uma satisfação imensa. Ofereceu um braço a 4IP e o outro ao Canarinho e rumaram para a casa em animada palestra. PY4IP fez um estardalhaço medonho, chamou todo o mundo para conhecer o seu colega e amigo. Tratou de pô-lo à vontade deixando de lado toda a cerimonia. E foi num ambiente de franca camaradagem que PY4JG passou 10 dias que correram rápidos, em Santa Cruz do Escalvado, dos quais, sem dúvida guardará imorredoura recordação. Eurico e Auxiliadora - MAI42 Eurico e Dodoge - MAI42 Santa Cruz do Escalvado Santa Cruz do Escalvado
Abordando...
Os dias corriam céleres em meio de uma alegria intensa. Nem uma ligeira nuvem para toldar àquele “céu aberto” PY4IP é diretora de um Estabelecimento de Ensino Primário, portanto às 7,30 da manhã já estava firme no “batente”. PY4JG ao se levantar, dirigia-se para as Escolas e por lá passava as manhãs em companhia de sua amiga e sua interessante Secretária. Ora davam passeios pelos arredores, ora ficavam em palestra pelo jardim, tirando fotografias, até que o relógio anunciasse a hora do almoço. Após o almoço, o Jovem Galante voltava às Escolas sempre acompanhado pelo Canarinho. Neste convívio, a intimidade entre os dois foi se estreitando e Cupido começou a fazer ronda entre aqueles dois corações. PY4IP começou, de seu posto estratégico, a fazer as suas observações e viu que as “cousas” andavam em progresso. Se bem que no intimo estivesse contentíssima, não olhava com bons olhos aquele namoro... Receava que o seu amigo – moço de um grande centro – estivesse a cata de um passatempo para quebrar a monotonia da roça. Ela não queria que o Canarinho sofresse uma desilusão. Ela, que já tinha experiência da vida e que já conhecia o travo das desilusões, concebeu a idéia de pôr um cobro naquela brincadeira. Assim, aguardava um momento oportuno para chamar as “falas” o seu colega. O momento não tardou. Todas as noites, após o jantar, PY4IP descia ao seu studio, onde trabalhava confeccionando flores. Era sempre acompanhada de seu hóspede, o Canarinho e às vezes de sua irmã Branca. Por ali ficavam até tarde da noite, quando Morfeu anunciava a todo mundo a hora do repouso. Certa vez, PY4IP dando uma incumbência qualquer a sua Secretária, teve ensejo de ficar a sós com o Jovem Galante e então aproveitou da ocasião para inquiri-lo. - Olha, PY4JG, vou lhe fazer uma pergunta a qual Você por favor me responderá com toda a franqueza. Você me promete? - Prometo, sim, pode perguntar – respondeu sorrindo. Então a sua interlocutora, concentrando-se como se meditasse nas palavras que ia proferir, disse: - Desejo saber, meu amigo, se esta “brincadeira” sua com minha sobrinha, é seria ou não passa de um mero passa tempo? Desejo saber, meu filho, porque na minha vida sofri muitas decepções e sei quanto são dolorosas! Senti fenecerem os meus lindos sonhos de moça e ruírem-se os meus magníficos castelos... Não quero que a pobrezinha sofra o que sofri. Portanto, é tempo de acabarmos com isto. Deixemos de magoar aquele coraçãozinho inexperiente. Seja franco, eu lhe peço. Não ficarei zangada com Você, pois sei relevar as cousas. PY4JG não ficou surpreendido com aquela pergunta e nem se sentiu entre a “espada e a parede”, parece que esperava por aquilo. Ficou sério e colocou toda a sua alma na seguinte resposta. - Foi muito bom Você me fazer esta pergunta, pois, eu me preparava para lhe dizer algo a respeito. Confesso que o Canarinho causou-me profunda impressão. A minha intenção é a melhor possível. Não cogito de passatempos, mormente sob este teto onde tive a mais carinhosa acolhida. Desejo fazer desta menina a companheira de minha vida. Esta satisfeita, minha amiga, com a minha confissão? PY4IP deixou que se lhe escapassem dos olhos uma lagrima de comoção, e apertando a mão do seu amigo só poude dizer: - Obrigada, meu filho. Daquele momento em diante as cousas mudaram. O Jovem Galante ia retirando do deposito uma porção de sacarina, glicose, mel de tanque e todo o material “doce” cujo stock possuía em abundância. Era um nunca acabar de melosidades quando tinha a seu lado o Canarinho. E os ponteiros do relógio dispararam a correr como se fossem de fabricação italiana... anunciando que se aproximava a hora dolorosa da partida; a hora da separação daquele cazalzinho que havia se abrigado sob o manto protetor de D. Felicidade.
Assanhamento da sogra
Depois da confidência do Jovem Galante, a confiança foi assenhorando-se de PY4IP e com ela foi também aumentando o que nos dois pombinhos já era completa. A mãe do Canarinho ia de cambulhada nesse mar de confiança... PY4IP, posto que acreditasse na palavra de seu amigo, trazia continuamente na lembrança aquele refrão popular: gato escaldado tem medo até de água fria... A mãe do Canarinho – santa criatura demasiadamente tolerante, não percebia que já estava passando dos limites aquela intimidade e que a sua confiança também já ia fora da raia... E o tempo ia correndo e no studio de PY4IP as “fitas” iam enrolando e desenrolando na presença dela e ela tudo observava com complacência. O Canarinho teve um forte acesso de malária e teve que recolher-se ao leito, justamente no momento em que a PY4IP tinha que comparecer a uma procissão de Nossa Senhora. Quando voltou foi diretamente ao quarto da enferma e lá encontrou o Jovem Galante “bancando” enfermeiro... Achou aquilo esquisito, admirando-se da coragem de sua irmã em consentir que rapaz estranho, que não tinha nenhum compromisso com sua filha transpusesse os umbrais do seu quarto permanecendo lá com foros de noivo. Esperou uma brecha para censurá-la. Encontraram-se mais tarde a sós, e não quis adiar o comentário. Foi logo entrando no assunto: - Mana, estou perplexa com a sua atitude; com a confiança que Você está dando a esse rapaz, estranho completamente para nós. Apenas sabemos que ele é rádio amador, isto é credencial? ( A 4IP apertava os parafusos para ver se a irmã encabulava. ) Ninguém conhece as suas intenções... Podem ser boas, como também podem fracassar. Não acho isso direito. Estou lhe estranhando, minha irmã. - Também eu estou me estranhando, minha filha, pode crer – assim principiou ela calmamente. Estou vendo tudo isto que Você acaba de me dizer, e no entanto, estou tranqüila. Meu coração me conta que o Eurico é incapaz de abusar de minha filha. Antes de conhece-lo, só pelo rádio naqueles magníficos comunicados, eu já nutria por ele grande simpatia, e por que não dizer? Sincera amizade. Sempre que rezo pelos meus filhos, ele me vem na lembrança como se fizesse parte na minha “dupla” querida. Não me esqueço do dia em que Nair pediu nossas orações por ele. Rezo todos os dias. Tenho um pressentimento que ele nos veio enviado por Nosso Senhor chegando aqui no dia da Padroeira de minha filha para fazer a felicidade dela. - Puxa! Você está uma sogra muito assanhada... Peço a Deus para ouvir as suas palavras e abençoa-las. E que o meu amigo saiba corresponder a sua confiança e ao seu afeto para que a “dupla” se transforme em “trindade”... e que não tarde esse dia venturoso, não só para Vocês, como para mim que tanto prezo este parzinho adorável. Meu coração também já me havia segredado: eles serão felizes toda a vida... e nós duas também.
Vovó Branca, Eurico e Auxiliadora Fazenda Laranjeiras - 1943
O amor aqui me trouxe
Mês de maio, consagrado à Virgem Santíssima. Mês de muita alegria e de muita surpresa. As crianças sonham com o dia da coroação de Nossa Senhora. Os sinos bimbalhando, a charanga num dobrado repenicado, o espoucar dos foguetes, as bandeiras, virgens e anjos na rua, anunciam que a “reza” vai começar. As mocinhas da roça, num vai e vem pelas ruas fazem flirt, esperando que o sacristão dê o sinal na campainha anunciando o começo do oficio mariano. PY4IP é diretora do coro da Matriz, do qual faz parte um punhado de meninas endiabradas... as quais são controladas pelo Canarinho que tem voz firme e sabe cantar. Sobem a ladeira em demanda da Matriz, PY4IP, PY4JG e o Canarinho. Sobem para o coro e logo um coroinha da sinal na campainha, e o Vigário devidamente paramentado dirige-se para o altar. A maestrina dá os primeiros acordes no harmônio enquanto a 4IP de batuta em punho dá o sinal e as crianças cantam o Vení Creator. Após as primeiras orações o Sr. Vigário faz uma pratica na qual fala sobre a devoção de Nossa Senhora. Fala sobre a assistência a santa Missa. Condena energicamente as praticas de um certo feiticeiro que é procurado por muita gente, e num crescendo de vez diz para o povo: Fica sabendo: Deus não é banana, pode castigar a Vocês. PY4JG que escutava atentamente a pratica, não se conteve, e para rir e não escandalizar as garotinhas, foi para uma janela. Terminada a pratica, seguiu-se a Ladainha. O Jovem Galante só para ter pretexto de ficar junto do Canarinho fez coro com as crianças, e por sinal, bem entoadinho... Terminada a Ladainha seguiu-se a coroação. Os anjos saíram cantando da sacristia e foram se agrupando aos pés do altar, enquanto o Sacerdote benzia a coroa e entregava ao anjo que subia vagarosamente as escadas até o trono da Virgem, seguido dos outros que levavam pétalas de flores. E a criançada cantava assim:
O amor aqui me trouxe A vossos pés Maria. No céu, no céu, no céu Eu vos verei um dia.
XXX XXX XXX
No studio da 4IP estão em silêncio, esta, PY4JG e o Canarinho. De repente PY4JG levanta-se pega nas mãos do Canarinho e canta
O amor aqui me trouxe A vossos pés Maria. O céu, o céu, o céu Eu vos darei um dia.
E o Canarinho ficou todo encabulado.
A partida
Na vida, tudo tem um fim – felizmente para as cousas más, e desgraçadamente para as cousas boas. Céleres correram aqueles 10 dias transbordantes de alegria. PY4JG recebeu um aviso telegráfico dizendo que era indispensável a sua presença em Niterói naquela semana. Sua mãe, aflita chamava-o. Em virtude desta ocorrência, ele teve que abreviar a partida. Foi acompanhado até Ponte Nova por PY4IP e o Canarinho. Elas queriam gozar mais algumas horas da companhia do amigo. No ônibus formaram uma trinca: PY4JG no centro dando a direita a 4IP e a esquerda o Canarinho. De mãos dadas os dois jovens mantinham um dialogo mudo e PY4IP indulgentemente apoiava aquela intimidade porque tinha convicção de que o seu amigo era direito, toda a vida.... De onde nasceu aquela convicção, Santo Deus? De uma intuição somente, porque 10 dias apenas, não são suficientes para uma criatura apoderar-se de tanta confiança! PY4IP, velha experimentada não se enganava, pois o Jovem Galante estava possuído das melhores intenções. Também, ele levava consigo um coraçãozinho no qual plantara essa flor exótica que não medra sem sacrifício: o amor. Partia acompanhado de um cortejo de esperanças e lindos sonhos e deixava vicejando em cada coração uma saudade. E na alma do Canarinho uma esperança fagueira. Em Ponte Nova almoçaram com as filhas de PY4FR; fizeram algumas visitas de despedida e finalmente o relógio da Matriz marcando 15 horas anunciava a hora da separação. Um abraço, ainda um aperto de mão, um adeus! E o ônibus partiu. PY4JG do passeio junto a Matriz, quedou pensativo seguindo com a vista o ônibus que conduzia o mundo de seus sonhos.
Viagem a Niterói
PY4IP fez uma excursão a S. Paulo por ocasião do IVº Congresso Eucarístico Nacional. Em viagem, passando por Juiz de Fora, teve a grata surpresa de encontrar-se com o Jovem Galante e sua digna progenitora que ali foram propositadamente para aquele encontro. Quanta satisfação! Que viagem magnifica fizeram até Barra do Piraí. As horas correram rápidas e o cansaço adiou o seu domínio para mais tarde. O Jovem Galante, naturalmente fez aquele sacrifício todo (pois havia torcido um pé) só para ter noticias frescas do Canarinho pois só falou em seu nome o tempo todo. Teve a oportunidade de firmar com PY4IP o compromisso de ir a Niterói acompanhada do Canarinho, tão logo regressasse de S. Paulo. Nair encontrar-se-ia com ela, e juntas iriam a S. Cruz do Escalvado, pois esta tinha desejos de conhecer a família da futura nora. Em Barra do Piraí, estando tudo combinado, com um até breve! despediram-se, tomando cada qual o seu destino. . . . . . . . . . . . . . . No dia 14 de setembro Nair chegava a Escalvado em companhia de PY4IP. Que imensa decepção ela teve com a fria recepção do Canarinho que nem sequer perguntou pelo Jovem Galante. Ela esperava sem duvida uma menina espanéfica[6] e encontrou uma “coluna de gelo”... Nair não se conteve e logo manifestou sua surpresa a PY4IP. Esta sorriu e disse: - Não se impressione... ela gosta muito dele. Isto é acanhamento. Você vai ver quando chegarmos a Niterói. Doze dias decorridos, as 3 partiram para Niterói vencendo os obstáculos da chuva e meios de transporte. Alugaram um caminhão até Ponte Nova, e de lá, a viagem correu muito bem. Chegaram ao Rio com um atraso muito grande, isto é, depois da meia noite. PY4JG impaciente aguardava a chegada do trem que traria a sua grande esperança... Muitos abraços... troca de impressões, etc etc, e seguiram para Niterói onde chegaram às 2 horas da madrugada. A casa estava toda florida, dando a impressão de que as hóspedes eram esperadas com uma satisfação imensa. Os dias alegres que ali passaram, os excelentes passeios, os intermináveis idílios.... ficarão sempre gravados na memória de PY4IP e sua Secretária. Jamais se esquecerão da carinhosa acolhida que tiveram, da família de PY4JG.
Porém o correto é o descrito (o cartão deve ter sido impresso errado) pois o IVº Congresso foi em São Paulo de 4 a 7 de setembro de 1942 e o VIº foi em Belém do Pará em 1953.
PY4IP descontrolada
Estamos em Niterói, num domingo diferente de todos os domingos do calendário de PY4IP. Niterói – cidade “sorriso” a beira mar plantada... Cidade onde habita uma família tão acolhedora, que maior abundância de qualificativos, ainda ficaria aquém, muito aquém do que eu desejaria dizer. Eu dizia da diferença daquele domingo, porque em sua terra, PY4IP normalmente trabalhava aos domingos no ensino do catecismo, ou presidindo algumas associações religiosas. E ela estava atoa, atoa... Por mal dos pecados, nem um passeio foi dado naquele dia. Era à tardinha, e o calor se fazia sentir. Num banco do jardim da casa 223 da rua Noronha Torrezão estava em doce colóquio um parzinho em vésperas de noivado oficial. Ele, - o felizardo, bem recostadinho no ombro dela, a sussurrar-lhe aos ouvidos, ternas frases de amor. Um colossal deposito de “sacarina” não continha mais doçura que as palavras do Jovem Galante! Francamente falando, eu não desejaria ser a brisa, as ondas, o rugido do mar bravio... Estas expressões, bailavam em desperdício nos lábios do noivo apaixonado. E ela, ébria de emoção mal sussurrava uma palavrinha para exprimir o seu contentamento. PY4IP não se sentia bem naquele “dolce far niente”... e começou a ser maltratada por um mal chamado nostalgia. Sua imaginação sempre propensa a sentir aquilo que ainda está por acontecer, ora pensava na realização próxima do enlace do Jovem Galante e o Canarinho – acontecimento que representaria para ela um misto de alegria e dor, alegria pela união de duas criaturas que representavam para ela um mundo de afetos; de dor, pela positiva separação – que plantaria em sua alma um canteiro de saudades. Outro quadro se desenrolava ante a sua imaginação: via entre as quatro paredes de um quarto, lá bem distante, duas criaturas queridas que sofriam.. E PY4IP tinha uma vontade louca de chorar. Começou, então, a andar pelo jardim de um lado para outro, presa por estes pensamentos, completamente alheia ao que se passava a redor. De uma feita, sentiu que seu vestido roçara nos joelhos do Jovem Galante, e justamente naquele instante, este dirigindo-lhe a palavra fez a seguinte pergunta – cujo sentido no momento foi mal interpretado: - PY4IP, Você está andando aqui, é para nos vigiar? Ela parou, fixou-o bem de frente e respondeu bruscamente sem nenhuma reflexão: - Você está enganado, meu filho, se eu não tivesse plena confiança em Você, não estaria neste momento nestas plagas... E o Jovem Galante, fingindo não compreender a réplica de sua amiga, voltou com a mesma pergunta. Naquele instante, o descontrolamento tomou conta de PY4IP, que naquele momento não teve a percepção de que aquilo poderia ter sido uma brincadeira levou muito a sério as palavras do seu colega, e, cavaqueada disse-lhe de chofre: - Você acaba de me ofender com a sua pergunta. E retirou-se indo assentar-se numa poltrona na sala de jantar retendo com dificuldade as lagrimas que queriam fazer uma inundação. O Jovem Galante que não esperava que a sua brincadeira fosse levada à sério, ficou encabulado perdendo o assunto. Procurando um pretexto, separou-se da noivinha e foi para o interior da casa procurando aproximar-se da sua “futura tia”. Esta, ao perceber a estratégia do seu amigo, retirou-se incontinente para o quarto e sem mais aquela, começou a chorar. Naquela hora a “Razão”, sempre boa conselheira, murmurou-lhe uma cousinha nos ouvidos. Então, PY4IP, resolutamente procurou estancar as lagrimas, abriu a porta do quarto e com um sorriso nos lábios foi diretamente ao seu amigo que ainda estava estacionado no mesmo lugar, tendo a fisionomia de contrariedade. PY4IP ainda com os olhos umedecidos pelas lagrimas, aproximou-se do Jovem Galante, deu-lhe um beijo, dizendo: - Vamos fazer as pazes? A nuvem já passou e a tempestade está serenada. Esquece... e perdoa, sim? E enquanto não viu a expressão alegre voltar ao semblante do seu amigo, não ficou tranqüila. E o “arrependimento” que anda sempre na “garupa” das más ações, tomou conta do coração da PY4IP – que no íntimo de sua alma lastimava ter um temperamento tão esquisito que a tornava incompreendida até pelos mais íntimos. Depois desta cena, uma
interrogação dolorosa
ficou traçada em sua imaginação... Eurico e Dodoge - Niterói - OUT42
Auxiliadora e Eurico - Niterói - OUT42
Epilogo.
A manhã do dia 5 de Outubro de 1942 surgiu radiosa. Para dois corações que se amavam apaixonadamente, havia também surgido uma aurora rutilante de felicidades. PY4JG havia ficado noivo de Canarinho e naquele dia, aniversário de Nair – mãe do Jovem Galante, aproveitaram para anunciarem o noivado. A cerimonia deveria ser iniciada por um ato religioso bastante significativo para duas famílias católicas praticantes: uma Missa. Às 8 horas, a Capela da Casa das Madres – Filhas de Maria Imaculada, estava de porta aberta para receber D. José Pereira Alves, Bispo de Niterói, que seria o celebrante. Os parentes e pessoas amigas da família, aguardavam no alpendre a chegada do parzinho. Na Capela lindamente ornamentada, havia lugar destacado para os noivinhos. D. José paramentou-se e deu principio ao oficio divino. Durante a Missa, os noivos e demais membros da família receberam a Santa Comunhão. Nair e PY4IP com custo retinham as lagrimas de alegria. Após a Missa D. José benzeu as alianças e pessoalmente entregou-as aos noivos. Comovidamente o Jovem Galante beijou a aliança e colocou-a no dedo de sua noivinha, e esta fez o mesmo segurando a mão do seu Príncipe Encantado, afim de que a aliança corresse desembaraçadamente por aquele dedinho esguio.... D. José fez uma linda alocução congratulando-se com as famílias dos noivos sobre a maneira que comemoraram aquele acontecimento. Disse algo sobre os deveres conjugais, sobre a vida que um próximo futuro lhes abriria, e terminou com estas belíssimas e comovedoras palavras: - Contratos como este, não se escrevem na terra, registram-se no Céu, no Coração de Nosso Senhor! Finda a Missa, seguiram-se os cumprimentos. PY4IP beijou com ternura o parzinho, segredando-lhe nos ouvidos uma multidão de “bons desejos”. Nair ofereceu aos convidados um chocolate que foi servido no refeitório da Casa das Madres. Antes de terminar, PY4IP levantou-se, pediu permissão a D. José para dirigir umas palavras aos noivos, pedindo-lhe antes a sua benção para si e os seus. Com voz velada pela comoção, começou assim: - Eurico e Auxiliadora Já dizia o decantado e celebérrimo Conselheiro Acacio, que há momentos na vida que o silêncio diz mais que uma catadupa de palavras. Concordando com ele, eu deveria permanecer silenciosa, neste momento feliz para mim, para nós Nair e para Vocês Eurico e Auxiliadora. Mas tenho necessidade de me expandir perante uma família reunida, no meio da qual senti-me à vontade desde o 1º contato. Comemoramos hoje, minha cara Nair o contrato de casamento dos nossos filhos portanto as minhas primeiras palavras de congratulações são para Você que vivia sonhando com a felicidade de seu querido filho, tão desejosa de vê-lo chefiando um lar onde reinasse alguém que viria a ser o complemento de sua vida. Esse alguém, vim eu lhe trazer de presente minha amiga. Auxiliadora – encanto de minha vida – não preciso dizer-lhe o que me vai nalma neste instante, pois Você bem sabe que o meu coração está inundado de esperanças de vê-la feliz ao lado do “escolhido” do seu coração – do Príncipe Encantado que veio despertar o coração da minha princesinha. Você sabe muito bem o que desejo para o Eurico: faça-o feliz, pois ele é merecedor de um pedacinho de céu nesta vida salpicada de tantos aborrecimentos. Em suas mãos está a felicidade do meu querido amigo. Faça tudo por merecer a sua confiança e a felicidade reinará entre Vocês. E o que direi para Você, meu querido Eurico! Você que é o “Senhor Absoluto” do meu coração, e conhece de há muito o que nele se passa a seu respeito. Não preciso gastar palavreado: leia o que Você quiser, no livro de minha alma, na pagina dos “bons desejos”. Representando aqui a minha querida Branca, quero em nome dela dizer que a felicidade de Vocês é o anelo[7] de sua alma de santa. Ela sente-se feliz com mais este filho que Deus acaba de lhe dar. A forma porque Vocês procuraram comemorar o noivado, vai ser para ela motivo de muita satisfação. Tenho a certeza de que, se ela aqui estivesse, diria fervorosamente: “meus filhos, que o Coração Eucarístico de Jesus reine para sempre no coração de vocês”. Ao terminar, ainda tenho uma palavrinha para Vocês, Eurico e Auxiliadora: espero que na minha decrepitude que já se aproxima, ao dirigir-me com passos trôpegos para o meu Studio, quando acariciar com minhas mãos tremulas o meu querido transmissor – que foi a ponte por onde passou Cupido para a caçada de corações – eu possa sempre pronunciar estas palavras: bendito sejas tu, meu querido transmissor, que além das horas felizes que me proporcionaste, vieste trazer a “felicidade” para a minha idolatrada Secretária e meu queridíssimo PY4JG. .... .... ....
PY4JG agradeceu comovidíssimo num lindo improviso, agradecendo também a todos os presentes.
E aqui fica terminada a historia Proezas do rádio.
Santa Cruz do Escalvado, Dezembro de 1942.
Carta de PY4IP a PY4JG.
(Esta carta é um adendo as Proezas do rádio. Foi escrita depois que PY4IP regressou de Niterói e num dia de muito aborrecimento por falta de cartas do Jovem Galante e sua mãe. É fruto de uma imaginação fértil em cousas... inadmissíveis...) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meu amigo Muitas vezes uma mágoa produz uma chaga tão profunda que dificilmente é curada. Estou muito triste com o seu silêncio, pois, há quase um mês que regressamos e nem uma linha recebemos. Minhas cartas em grande número, não tem tido resposta. Além disto, o que tem me incomodado bastante é o mutismo de sua mãe. Da parte dela , nada suspeito porque tudo quanto ela fez por nós foi tão espontâneo, tão sincero, que para externar o que me vai nalma só encontro a palavra – gratidão. Mas Você, meu querido Jovem Galante?! Não encontro nenhuma explicação diante da sua atitude, senão a confirmação do que “alguém” me disse: Você ficou agastado comigo por causa das muitas visitas que fiz ao Rio. Você, meu filho, não sabe perdoar. Você, meu amigo, não soube ser franco, por conseguinte está praticando uma grande injustiça com a sua velha amiga. Quando deixei a minha casa, o meu batente, a minha irmã doente – da qual nunca me afastei em idênticas condições, foi por sua causa, para levar-lhe o Canarinho adorado. Foi para abreviar a realização dos seus desejos. Foi para cumprir com a minha palavra. Por conseguinte, eu deveria também estar pronta para satisfaze-lo, ainda que para mim fosse sacrifício. Sua mãe, sempre boa, estava para o que eu quisesse. Você nunca reclamou, por excesso de delicadeza, o que fez mal. Eu pensava que tudo estava direitinho. Ah! Se Você fosse franco, meu amigo, arranjaríamos tudo! Mudaríamos de horário e reservaríamos as tardes só para Você. Saindo de casa nas circunstancias em que me achava, eu tinha necessidade de um atordoamento para poder permanecer mais dias por aí e não tornar-me imprudente. Porque razão Você não me disse assim: - PY4IP, Você está me prejudicando, está desnorteando o meu Canarinho e obrigando-me a canseiras após um batente pesado. Seria modificado o horário de minhas visitas e quando fosse à tardinha estaríamos a sua espera. Você, menino, não foi franco comigo como devia ser atendendo a nossa grande amizade. Você, que tem um coração tão generoso, não quer perdoar-me. Veja o que faz, meu Principezinho Encantado. Não mate mais uma ilusão de sua velha amiga. Seja generoso. Atende-me nesta suplica derradeira: não negue a sua velha amiga o seu carinho. Mande-me uma carta daquelas que representam para mim, uma “deliciosa carícia”. Se Você ainda tem mágoa, perdoa e esquece, porque Você sempre foi, é e será o meu maior amigo. Façamos as pazes com um beijo e um abraço sincero
PY4IP.
11.11.1942.
Sonhando... acordada.
Um dia... ó que dia alegre e feliz foi aquele! Você transpôs longo caminho, veio de longe, muito longe e bateu na porta do meu velho coração pedindo uma guarida. Entrou e escolheu o mais confortável apartamento e nele fez sua morada. Inquilino assim, jamais penetrou naquele velho casarão: bom, sincero e amigo de verdade! Retoquei com carinho todas as dependências do cômodo – já bastante estragado pela saraivada das ingratidões... Espalhei flores por toda a parte afim de impedir a entrada do tédio. E eu vivia feliz, muito feliz! Mas... (há sempre um mas, para atrapalhar a vida da gente!) certa vez, houve um descuido, e o Tédio, aproveitando a brecha, resolveu a penetrar no apartamento e, como um raio, caiu em cheio por sobre o habitante descuidado e dele se apoderou. E o meu hóspede está cheio de nostalgia e devagarinho está recolhendo a sua bagagem querendo a todo o transe bater a plumagem linda!... Já não encontra encantamento em parte alguma e acha insípida aquela morada. A própria “flor da amizade” que florescia por toda a parte, amenizando o ambiente, agora só tem servido para causar-lhe aborrecimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Provera Deus, que Você não parta meu querido amigo! Tudo farei para impedir a sua retirada. Porém, se por desdita minha, eu nada conseguir, ah! Meu amigo, como serei desditosa! Lacrarei as portas do velho casarão, ficando dentro como prisioneira, apenas a “Saudade” – que cantará perenemente uma nênia[8] dolorosa!
Dezembro de 1942. [1] Código Q – QRT quer dizer “Cessar transmissão” [2] Estúdio - Sala (ou local de trabalho) onde ficavam os aparelhos de comunicação do radioamador. [3] A abóbada celeste; o firmamento. [4] Conversa mole. Conversa fiada. [5] Casada. Em radioamadorismo esposa é cristal, filho cristalóide e filha cristalina. [6] Afetada nos gestos, nas palavras ou no vestir; presumida. [7] Anseio. Desejo ardente. |